domingo, 14 de novembro de 2010

PÁSSAROS QUE LATEM

CAPÍTULO I - UMA ESTRANHA UNIÃO

Em um vale cercado por árvores densas, havia um grupo de animais que se reuniam de tempos em tempos para receber uma missão passada pela própria Mãe Natureza. Somente após compreender seu objetivo, o animal poderia continuar sua jornada. Havia algo de diferente desta vez. Animais com características nunca antes vistas.
Neste grupo havia pássaros, raposas, gatos, serpentes, cães e até caracóis. Cada um estava ansioso com sua próxima missão. Pacientemente, a Mãe Natureza dedicou seu tempo a cada um, dando a eles a incumbência que mereciam ou necessitavam.
Chegou a vez dos cães. Dentre eles haviam os chamados cães de rua. Eram cães sem dono, que riam dos adestrados, e passavam grande parte de seu tempo treinando a si mesmos. Orgulhavam-se disso. Seu ritmo, suas façanhas.
A Mãe Natureza parou de frente a um velho cão de rua. Mais velho no olhar do que os anos realmente passaram. Olhou no fundo de seus olhos. Olhou e olhou, até que então disse com sua voz sempre doce e amável: “Sua missão é ser o Pássaro-mais-velho”. O silêncio reinou em todo o vale por longos instantes.

...
O Pássaro-mais-velho era aquele pássaro mais experiente que tinha a função de passar o conhecimento para as aves mais jovens. Recentemente, três pequenos jovens pássaros chegaram ao vale e se uniram ao grupo.
O cão, humilde e respeitosamente, questionou a ordem: “Mãe Natureza... desculpe-me, mas... essa determinação não deveria ser destinada a um pássaro? Há, entre nós, pássaros preparados para tal. Eu sou um canídeo, não sei o que fazer. Eu nunca voei. Como ensinar meus passarinhos a voar? Como alimentá-los?”.
A Mãe Natureza respondeu placidamente: “É o que você deve fazer. Essa é a sua missão!”. E continuou seu caminho, até o próximo animal.
O velho cão, meio sem jeito, olhou para as três pequeninas aves que o observavam com curiosidade juvenil, o achando um pouco estranho para um pássaro. Para começar, resolveu conhecer seus passarinhos, suas individualidades e, assim, tentar entender seu verdadeiro objetivo.

O primeiro que observou tinha o elegante porte de um faisão, mas era algo mais parecido com um encantador e misterioso rouxinol e, como tal, não parava de cantar. Seu canto ininterrupto irritava alguns outros animais, mas o cão gostava. Aquele canto suave o acalmava.
Outro, o passarinho mais delicado, lembrava muito um pequeno canário, mas o cão sabia que, um dia, aquele pequenino ser se revelaria uma imponente arara azul. Tinha uma penugem linda e um olhar alegre, com um brilho intenso. Ainda cantava baixinho e não sabia voar, mas o cão podia ouvi-lo, cantarolando repetidamente enquanto olhava as montanhas ao longe: “Um dia eu vou voar até lá em cima! Vou voar e voar!”. O brilho cegante de seu olhar incomodava alguns outros animais, mas o cão gostava. Aquela luz o permitia ver seu caminho de modo mais claro e simples.
O terceiro pássaro procurava ter uma presença de ave de rapina, mas era, na verdade, um belo beija-flor. Tinha um ar desconfiado e movimentos certeiros, como toda ave que não se deixa admirar, e um olhar de quem achava estranho ser aprendiz de um animal que não realmente uma ave. Seu jeito arisco perturbava alguns outros animais, mas o cão gostava. Aquela firmeza singela o confortava.
O cão analisou a condição em se encontrava, mas ainda não sabia o que fazer, até que... um dos passarinhos saltou em sua direção e começou a cantar para ele. Os outros o seguiram e tentaram também um canto ainda meio irregular, agitaram suas asas como podiam, ainda sem conseguir sair do chão, e, em alguns pequenos pulos, se aproximaram do cão e se sentiram satisfeitos, fortes, protegidos. Em meio a pulos e cantoria, alguns dos outros animais que estavam assistindo aquela estranha união podiam jurar que um dos passarinhos tentou, ainda que de modo desengonçado, esboçar um latido.
O velho cão sorriu e aceitou sua missão: “Por onde começar?”. Com a intenção não apenas de proteger e cuidar, mas de treinar seus passarinhos, construiu um ninho no alto do eucalipto centenário de forma tão irregular e grosseira que apenas um cão seria capaz de fazer.
Olhando aqueles pequenos pássaros, satisfeito com a situação, o cão entendeu que tudo aquilo fazia parte de um plano da Mãe Natureza. Tudo aquilo tinha sua razão de ser. E ao longe, porém próxima a todos, a Mãe Natureza observava atentamente.

B.C.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

DAS COISAS QUE EU ME LEMBRO E A CHUVA


Não me lembro de uma discussão supostamente importante que tive semana passada, mas me lembro de colocar barquinhos de papel na enxurrada quando eu tinha algo em torno de cinco anos de idade.

Lembro-me de chuvas passadas. De ter medo da chuva. De conversas olhando a chuva. De correr na chuva. De ficar de braços abertos, olhar para cima e sorrir sob a chuva.

Lembro-me do olhar dela e do jeito doce que brigava comigo.

Ler um romance policial (o Cão Amarelo), tomando capuccino, ouvindo a chuva, me fez lembrar de um tempo em que o grande debate que tinha com um certo amigo era se Sherlock Holmes era melhor que Hercule Poirot. A lembrança se foi com um sorriso, quando observei que esse duelo verbal perdura há quatorze anos. A discussão foi retomada com o lançamento do último filme do detetive britânico.

Observando a chuva, neste momento, com minha cadela deitada ao meu lado, me lembro de meu avô me ensinar que cachorro atrai raio. Lembrar de meu avô, por sua vez, me trouxe a lembrança dos doces de minha saudosa avó, que sempre acabavam mais rápido quando chovia.

Não me lembro de onde estacionei o carro, nem do que comi durante o almoço.

Alguns chamam de fuga. A verdade é que certas lembranças, mesmo que corriqueiras e simples, devem ir com a enxurrada.

Perdoe-me se não me lembrei do seu aniversário ou de uma briga que tivemos, mas saiba que me lembro sempre, com carinho, da sensação boa de estar ao seu lado durante uma conversa banal.

Coloquei um barquinho de papel na enxurrada hoje. Olhar aquele pequeno origami se aventurando por águas hostis me fez sentir uma paz perfeita. Um momento, uma sensação, da qual com certeza me lembrarei.

B.C. Maoli