terça-feira, 31 de julho de 2012

O rascunho

A todos aqueles que ousaram 
não matar a criança interior 


Abri a porta do carro para ir embora, com a cabeça repleta de pensamentos não lineares, onde cada problema tomava voz em um cenário mental semelhante ao que se imagina da bolsa de valores.
Valores...

Ansiedade
Frustração
Depressão
Irritação
Raiva
Agressividade

Respiro fundo e meu coração me diz:

Tudo bem!
Tudo bem!
Tudo bem!
Tudo bem!

Olho para o lado e lá estava ela. Acho que tinha sete, no máximo oito anos de idade. Pegou um pedaço de bambu e ficou arrastando no espaço entre a calçada e o muro, onde a grama ainda não havia crescido, fazendo um rastro interminável na terra.
Criança na calçada.
Brincar com o que achava por aí.
Riscar o chão com pedaço de tijolo.
terra.

Sintonia
Paz
Nostalgia
Empolgação

Me vem à mente o poeminha de Casimiro de Abreu que todo mundo aprende no colégio e que agora me parece mais triste do que no início dos anos 90 quando o li pela primeira vez:

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,

 Da minha infância querida 

Que os anos não trazem mais



Nessa hora meu coração grita:
 
TUDO BEM! TUDO BEM! TUDO BEM! TUDO BEM!


A criança andava e olhava para trás admirando o que estava fazendo, e sorriu de satisfação. Que sorriso lindo. Jogou o bambu fora, olhou para frente e continuou seu caminho, andando e sorrindo.

Aquele sorriso foi regado pelas palavras de felicitações que recebi de uma sábia escritora:

"(...) que Deus o ajude a realizar os seus sonhos, aqueles que nunca envelhecem e que estão sempre cada vez mais vivos dentro de você".

Vivos dentro de mim
Quebra de ego
Adoro cultivar plantas no quintal como uma velhinha. É o que ficou de minha avó em mim

Pra longe de tudo
Aprendi a arte da humildade e o refinamento da simplicidade. É o que ficou de meu avô em mim

Sou uma das poucas pessoas que tem o privilégio de ter mantido, ainda aos 30 anos de idade, amigos de infância. Sou padrinho do filho de quem brincava comigo de estilingue, dentre outras situações agradáveis de se pensar. Ser adulto significa ter a responsabilidade na medida apropriada para fazer o bem a outras pessoas. A criança interior deve permancer viva, já que faz parte dessa pintura


Meus sonhos, que nunca envelhecem e que estão cada dia mais vivos dentro de mim são a essência do texto, tudo o que foge a isso é rascunho. Rascunho que talvez um dia eu passe a limpo e torne-se essência também. Eu ainda estou escrevendo a história da minha vida.

E assim, mais uma vez, Deus renovou o meu espírito

 

Meu coração começou a cantarolar baixinho para eu dormir tranquilo:

Tudo
Bem


Tudo


Bem



Tudo


Bruno César


sexta-feira, 27 de julho de 2012

PÁSSAROS QUE LATEM - CAPÍTULO XV

Do alto no ninho, sentado em posição de vigilância, o cão refletia acerca das consequências dos últimos acontecimentos, enquanto os passarinhos trabalhavam na reconstrução de seu lar. Sem qualquer aviso, som ou cheiro, uma presença inadvertidamente surgiu ao seu lado.
_ Olá, Mãe Natureza! É sempre um prazer revê-la – disse o cão, mantendo-se imóvel.
_ Olá, irmão-cão! – a Mãe Natureza levantou a cabeça, encheu os pulmões, e continuou – Ah, como estou feliz por voltar aqui! Estava com saudade da energia de seu ninho.
_ A senhora é sempre bem-vinda, Mãe, mas imagino que não tenha vindo apenas para nos agraciar com sua visita.
Ela sorriu e, afagando a orelha do cão, respondeu:
_ Você está certo. É chegada a hora de, mais uma vez, distribuir as missões e eu vim pessoalmente para lhe dizer que é a vez de um pássaro assumir o ninho. Você, meu querido cão, não é mais o Pássaro-mais-velho.


...
PÁSSAROS QUE LATEM – Capítulo XV
O segredo da Mãe Natureza

O cão reuniu seus protegidos no centro do ninho e explicou sobre os novos ares que estavam por vir. A anunciação foi interrompida quando alguns se levantaram e bateram suas asas de modo agitado:
_ Não é justo! A grande tempestade, para a qual fomos preparados desde o início, finalmente passou e agora que já estamos reestruturando o ninho vem um pássaro? Tudo parece em equilíbrio, mas ainda há muito a se fazer – disse o sabiá.
_ Será muito estranho ser aprendiz de um animal que não seja um cão – disse a aracuã.
Sabendo que não há outro modo de reagir às determinações da mãe natureza a não ser aceitar, a irmã-cadela se deitou e colocou a cabeça entre as patas. A irmã-suçuarana, anteriormente o gatinho inseparável e já há algum tempo um ser grande demais para o ninho, vira de costas e diz não aceitar. Ela adora os passarinhos, mas sente a necessidade de encontrar outros de sua espécie. O ninho já havia se tornado pequeno demais para ela e agora sente que não haverá mais razão para continuar ali.
E em meio a piados, grasnados e resmungos, o cão continou:
_ Eu também não entendo, meus pequenos. Depois de todos esses ciclos, de tantas chuvas torrenciais, ser um Pássaro-mais-velho tornara-se algo quase natural, mas as decisões da Mãe Natureza estão além de nossa compreensão e cabe a nós, como seus filhos, respeitá-la sem questionar.
_ Não há um porque de tanta comoção. – disse o pequeno filhote de coruja, com sua penujem destoando de seu olhar de sapiência, a qual vem mais de sua natureza do que de experiências vividas - Você não é um pássaro e merece ser mais do que um pássaro. Mas também não é mais um canídeo. Você ainda parece um cão, mas se tornou um outro ser e um dia irá mostrar ao vale que animal você se tornou.
O cão sorri:
_ Obrigado, minha pequena corujinha. Tenho a impressão de já ter ouvido suas sábias palavras em algum lugar. Meus passarinhos, toda mudança, de certa forma é positiva. Há certas coisas que apenas um pássaro é capaz de fazer e será bom que treinem certas habilidades próprias de aves, como diferentes técnicas de voo. O novo Pássaro-mais-velho está vindo cumprir a missão que recebeu e pousará entre nós a qualquer momento. Eu quero que me prometam uma coisa: não se esqueçam do que aprenderam aqui. Respeitem aquele que será o Pássaro-mais-velho deste ninho e ele respeitará vocês. Quem sabe vocês não possam ensiná-lo alguns truques. Todos do vale sabem que vocês não são meras aves e isso não irá mudar. Olhem, ele está chegando:
_ Olá, irmão-cão. Há quantos ciclos!
_ Seja bem-vindo de volta, irmão-tiê. Meus passarinhos não poderiam estar sob melhores asas. Boa sorte em sua jornada. Cuide de meus pequeninos.

O cão olhou para trás uma última vez. As pequenas aves se juntaram ao seu redor e deram as asas, formando um círculo, que representa tudo o que foi e tudo o que um dia irá ser.



...
E assim, o velho cão deixou o ninho que tentou construir. Enquanto seguia sua jornada, cujo caminho sentia que precisava percorrer, se lembrou das palavras da Mãe Natureza, ditas após o anúncio do fim de sua incumbência, esclarecendo as motivações de sua decisão, e que agora ecoavam em sua mente:
“Olhe ao seu redor, irmão-cão. Tudo ficou claro para mim quando eu observei a nova geração de seus aprendizes. Eu dei a você uma missão: cuidar de jovens passarinhos. Veja o que aconteceu. Os Pássaros que Latem se espalharam por todo o vale. Não são mais um grupo. Eles se tornaram uma nova espécie. E cada pássaro ao sair de seu ninho e voar por conta própria se tornou capaz de criar um novo Pássaro que Late na árvore em que foi pousar. O falcão está sempre de guarda; a coruja o ajuda na instrução dos mais jovens; o bem-te-vi sempre alerta fiscalizando cada voo; o tucano quebra os alimentos mais duros para facilitar a alimentação dos pássaros que não desproveem de seu poderoso bico colorido; a cambacica não espera mais o período de floração e aprendeu a semear árvores frutíferas para se alimentar das flores que quisesse, além de ajudar na alimentação de outros que dependem de frutos, mas ainda são jovens demais, como o sanhaço. Outros, assim como foi com a harpia, ensinam cãezinhos a semear. Só há razão de ser, irmão-cão, aquilo que ainda não chegou. Não haverá fim para essa nova realidade e, portanto, não há mais nada a se fazer aqui. Estou satisfeita. Um dia, você aceitou com relutância a sua missão. Agora aceite que você a cumpriu. Aceite. Sua missão terminou.”

“Terminou...” – repete mentalmente o cão – “Terminou”. Ele adentrou na Floresta de Eucaliptos, que os passarinhos cultivaram; atravessou o Deserto de Ametista, assim como o Bosque das Árvores Secas; subiu pelo Riacho da Cascata Ascendente; descansou um pouco sob a Árvore-do-que-poderia-ter-sido e lá conversou um pouco com o protetor do lugar, o filho da água; correu, pulando e latindo, satisfeito, pelo Jardim das Margaridas e se encostou entre o Eucalipto Centenário e a Pedra do Firmamento. Ali, deitado, repensou em tudo o que passou, olhou para a lua e disse o último “muito obrigado!”. O cão respirou fundo. Sentiu-se feliz pelo cheiro agradável de musgo e terra. Colocou a cabeça entre as patas, fechou seus olhos e, finalmente, se tornou um com a natureza.

Uma brisa fria percorreu por todo o vale. Longe dali, o beija-flor, que estava treinando seus novos protegidos, parou no ar e voou para cima, rápido e em silêncio; do outro lado da floresta, a harpia-azul fitou seus cãezinhos, os quais atendendo o olhar foram para a toca e se deitaram, esperando seu retorno. Da mesma forma, os oito passarinhos que estavam aos cuidados do novo Pássaro-mais-velho, assim como dezenas de outras aves, que quando filhotes aos cuidados do cão se destacaram entre os seus e que agora lideravam pequenos grupos de animais, repassando o que aprenderam, voaram e pousaram no topo das árvores mais altas. Olharam para lua, respiraram fundo, abriram suas asas e uivaram. Uivaram por toda a noite.

Naquela noite, ouvia-se o uivo em uníssono dos Pássaros que Latem e nada mais além.



...
DIAS DEPOIS.

_ Levanta e venha comigo! – disse a Mãe Natureza. Disse e foi para o alto da montanha central.
O ser que um dia foi um cão abre os olhos, olha para o que se tornou e sorri. Ele se levanta e voa até onde está a Mãe Natureza, e de lá seguem voando juntos observando e acompanhando, de um horizonte ao outro, o desenvolvimento daqueles que serão, para sempre, os seus passarinhos.

FIM
Era uma vez um cão de rua que treinava a si mesmo, que um dia recebeu a missão de ser um Pássaro-mais-velho, que travou batalhas e sobreviveu a tempestades, que viu seus pequenos pássaros crescerem e receberem eles próprios as suas missões, que mereciam ou necessitavam, e que conseguiu da mãe natureza, por meio de uma estranha missão, aquilo que mais desejou: ser livre.


BC
P.S.: Com essa missão, eu aprendi mais do que ensinei. Obrigado por tudo, meus passarinhos! Muito obrigado!