sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

SUA MÃE VAI MORRER (Interlúdio)

Era uma vez na U.T.I.
  • Uma crônica baseada, infelizmente, em fatos reais.

Entro e vou falar com a recepcionista:
_ Quando liberam a entrada para visitas?
_ Quinze horas. Eles organizam lá em cima e me avisam por telefone para que eu possa liberar vocês.
_ Então... Muito obrigado!
Resolvo me sentar em uma das cadeiras enquanto aguardo a hora indicada. Uma senhora de cabelo grisalho bem curto olha para mim aparentando curiosidade em saber quem é o motivo de eu estar ali ou qualquer outro assunto que sirva para iniciar uma conversa. Olho para a janela.
Após entrar, me viro para o lado e lá está a senhorinha fazendo massagem nos pés de um senhor inconsciente que ocupa o leito à esquerda:
_ E a moça que estava aqui ao lado? – perguntou à enfermeira.
_ Teve alta ontem à noite – respondeu e foi para o outro lado da sala.
Ela me olha como quem tem necessidade de fazer algo que auxilie alguém, qualquer coisa, mas a sensação de impotência a destrói por dentro. Resolvo ampará-la e a deixo me ajudar:
_ Isso faz bem? – pergunto “ingenuamente”.
Foi apenas isso que falei e seus olhos chorosos ganharam brilho:
_ É muito bom pra ele. Você segura assim e faz assim, ta vendo?
Se sentir útil parece acalmá-la.
Eu começo a massagem e ela consegue sorrir.
...

No outro dia, lá está ela fazendo massagem e olhando para mim:
_ Quem é o seu doente? Seu pai, seu avô?
Meu doente? Penso, mas não falo. Ela não precisa de um chato nessa fase triste de sua vida. Respondo e devolvo a pergunta:
_ E o seu doente?
_ Meu marido – diz passando a mão em seu rosto.
Talvez estivessem até brigados, mas a dor une as pessoas. Ela precisa se sentir útil para se sentir bem, e eu preciso analisar banalidades como se fossem coisas importantes, como minha válvula de escape.
...

Mais um dia e ela passa um líquido no rosto do doente dela. A princípio achei que era para hidratar, já que a pele do coitado estava ressecada, mas percebi que era água benta, ou consagrada, ou algo do tipo. Era fé. Meu doente acredita que passar ímã no corpo melhora a circulação e ameniza dores. Após anos rindo de tal crendice popular, estou aqui passando o imã sobre sua perna. Não questiono mais se faz sentido ou não. Ele acredita. É só o que importa no momento. É fé.
Nos encontramos na saída:
_ O que o médico disse sobre seu doente? – ela pergunta.
Ofereço carona, mas ela diz que está esperando alguém para buscá-la.
...

Ontem a senhorinha não estava lá fazendo a massagem ou passando água com fé. Uma criança ocupava o leito ao lado.
_ E o colega? – pergunto à enfermeira.
_ Faleceu hoje às seis e meia da manhã.
...

Hoje, na recepção, um rapaz entra e vai até a garota no balcão:
_ Quando liberam a entrada para visitas?
_ Quinze horas. Eles organizam lá em cima e me avisam por telefone para que eu possa liberar vocês.
_ Então... Muito obrigado!

E a vida segue.

Maoli

sábado, 24 de dezembro de 2011

A MINHA GORDURA LOCALIZADA

*"Reprodução" na íntegra de uma resposta a duas simples perguntas:

“O que mais me aflige, BC? Como? Qual pensamento vem à minha mente assim que ouço essa pergunta? A resposta é: a minha gordura localizada! Qual resolução de ano novo não cumprida me irrita constantemente? A resposta para sua pergunta é: essa bendita gordura localizada!

E o tanto de promessa que fiz? No fim do ano passado prometi a mim mesma que iria me preparar pra uma promoção ou um emprego melhor. Prometi que reformaria minha casa e que faria uma horta no quintal e um lindo jardim. Prometi que cuidaria mais pra ter um casamento feliz. Prometi que faria aquela dieta milagrosa especial e até o natal desse ano eu iria ao clube e desfilaria de biquíni me sentindo o máximo por ter perdido minha gordura localizada.

Um ano depois, é frustrante pensar que, por mais que eu tenha me preparado, não vejo perspectivas no trabalho; que por mais que eu e meu marido tenhamos tentado juntar dinheiro, minha casa está ainda pior; que por mais que eu tenha me dedicado, o meu casamento está assim... Acho que é desse tipo de pensamento que vem a famosa depressão de fim de ano. Dizem que muitos suicídios acontecem na época do natal, sabia? É triste! E onde fica a coitada da minha gordura perto de tudo isso? Não é porque minha gordura ainda está aqui que ela me aflige, mas porque ela me lembra de uma coisa muito importante: Eu!

Me dediquei tanto a atingir minhas “metas essenciais” e o escambau que não me lembrei do prazer de fazer uma caminhada olhando a natureza. Minha vida é tão corrida que não posso dedicar um tempinho, talvez menos de uma hora uns três dias da semana, pra mim? Não posso esquecer dos problemas e me permitir o prazer de ser fútil nem em um domingo e relaxar em um fim de semana do mês me bronzeando? Posso sim! Oras, mesmo com minha querida gordura localizada eu sou gostosa! Será que o espírito natalino está me fazendo ser boazinha comigo mesma? Pensa, como ter um feliz natal sem me esbaldar na ceia? Se estaremos comemorando o nascimento de Cristo lá em casa, eu me dou permissão para comer até bolo de aniversário! E um próspero ano novo passando o reveillon regulando comida? Eu preciso alimentar minha querida Úlcy (a úlcera mais bem tratada do mundo). Como alguém de dieta pode desejar “Boas Festas”? Se o Papai Noel pode ser gordinho, porque eu não posso ter uma gordurinha leve na cintura?

Toda vez que olho pra esse pneuzão saindo pela calça jeans eu me irrito. Não pela gordurinha. Isso é só um detalhe. Eu me irrito porque com minhas resoluções de ano novo eu criei barreiras, verdadeiras condições para ser feliz, e, sempre que vejo minha gordura localizada, me lembro do tempo que perdi enquanto podia ter vivido. Me lembro de negar convites para viagens com nossos amigos, por vergonha do meu corpo. Festas e churrascos... Me lembro de ter dormido frustrada porque a balança não acusa nenhuma evolução, mesmo com toda aquela salada. Quando olho pra minha gordura me lembro de ficar tensa quando ia tirar a roupa para meu marido em vez de ter orgulho do meu corpo, pois eu sei que sou gostosa! Me lembro de ir trabalhar chateada e sem ânimo por causa dessa luta inalcançável, o que, obviamente, fez diminuir meu rendimento. Como quero ser promovida se já chego ao trabalho estressada?

Me lembro de outros requisitos a serem alcançados para que eu pudesse ser feliz que coloquei na minha vida, como uma casa linda e o casamento perfeito. Minha casa é linda do jeito que está! É um lar! Precisa sim de reforma, mas é aconchegante e repleta de amor. E quanto ao casamento? Agora entendo que meu marido não tem que se transformar em outra pessoa para se tornar companheiro. Precisamos aceitar nossos defeitos, perdoar nossos erros e entender que somos, acima de tudo, amigos e parceiros que se uniram para, juntos, seguir o caminho da vida superando dificuldades. E se não der certo mesmo com toda essa compreensão, eu troco de marido, oras! Eu sou gostosa!

Vou viver mais em vez de fazer planos. Ser feliz e todas as outras conquistas será conseqüência!

Tenhamos todos um NATAL MUUUITO FELIZ e um ANO NOVO CHEIO DE SAÚDE E PROSPERIDADE!!!

Minha lista de resoluções para o ano novo: Vou desligar o celular e fazer caminhada alguns dias na semana. E minha gordura localizada irá comigo ao clube sempre que ela quiser, graças a Deus!”

· A autora suplicou para não ser identificada, pois representa todas as mulheres, e dependendo da interpretação representa a todos nós


Bruno Machado

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A ESTRADA NOSTÁLGICA

(Para ouvir parte da trilha sonora que de certa forma “ilustra” o texto, aperte o play)


Ao chegar ao centro de uma casa de espelhos em um parque antigo, vários reflexos de diferentes formas mostram a verdadeira Luzia. Uma é alta e magra, outra é pequena e gordinha, outra é mediana e mediana e tantas outras que não se destacavam por motivos pessoais.

Ao enfiar o dedo no nariz e retirar uma formiga, sua cabeça finalmente parou de doer. Ela correu e correu e sua sombra não parava de segui-la. Olhou para trás e a encarou. A sombra, amedrontada, se escondeu no escuro e a deixou em paz.

Cansada, sentou-se na grama fria e ouviu um chamado: - psiu! – olhou de um lado a outro: - psiu! – olhou para trás e para frente: - psiu! – para baixo e para cima e achou o que procurava. Uma estrela estava chamando-a para a apresentação. A pequena Luzia, ansiosa, abraçou suas perninhas e logo começou o espetáculo. Ficou ali assistindo empolgada enquanto seus risinhos contagiantes se mesclavam a cantoria das estrelas.

Com ânimo renovado, ela aplaudiu dando pequenos pulos e agradeceu aos céus pelo cuidado.

Foi passear no bosque procurando sua formiga para terem uma conversa definitiva. Ela se deitou sobre as folhas secas e pediu desculpas. Aceitando-as, a formiga voltou e entrou em seu ouvido.

Sentindo-se plena novamente, ela andou até o lago, curiosa para descobrir quem ela poderia se tornar. Olhou com nostalgia a água gélida e cristalina e ao perceber que estava de volta, seu reflexo magro e alto sorriu. Luzia mergulhou porque queria tocar no fundo e quando subiu estava ensolarado e já era mulher.

A mulher chamada Luzia caminhou pela trilha do bosque e encontrou a estrada há tempos construída. Cansada pelos dias que virão, podia ver claramente o caminho que iria percorrer de onde estava até a linha do horizonte. Desde uma acentuada curva a esquerda até uma curva leve à direita e então sempre em frente. Durante o caminho, tendo o cuidado constante de se manter longe das calçadas, um único pensamento veio à sua mente: “Quando foi que tudo se tornou tão complicado?”.


Maoli

domingo, 27 de novembro de 2011

A VARA AMADA - I

“Dentro das Regras, nossas próprias regras.”

(Maoli)


Tenho falado pouco do trabalho em cartório, apesar de ser o título deste espaço de publicação de textos. Falei do cartório em “Pássaros que latem” (o cão foi baseado neste que vos fala, os pássaros que aprenderam a latir foram baseados na primeira geração de minha equipe e a mãe-natureza é Deus, com seus planos ordenados em situações, apenas aparentemente, caóticas). Falei do cartório também em “Tatuagens e outras marcas que ficam” (a última tatuagem foi um problema de trabalho superado de modo tão natural que chega a ser estranho), e no fim de “Lembranças do futuro do pretérito” (foi um texto sobre um futuro próximo ao calcular o tal problema no cartório que gerou a última tatuagem). Mas além de ter falado pouco, falei por meio de analogias que só são passíveis de entendimento por mim e por quem fez parte das histórias em meu ambiente de trabalho. Agora pretendo dedicar um espaço próprio para falar com certa freqüência sobre a escrivania judicial (o cartório de uma das Varas de Assistência de Goiânia) à qual tenho me dedicado de corpo e alma, literalmente. Mas porque essa dedicação?

Descobri que escrever me faz bem quando eu ainda estudava em uma escolinha chamada Gente Importante. Deveria ser obrigatório escolas infantis terem nomes idiotas. Para uma criança, isso é muito legal! “Gente Importante”. Com a chegada da fase adulta, os textos de minha autoria foram diminuindo na mesma proporção que o brilho em meus olhos. Parecia uma perda de tempo, já que eu poderia estar estudando, ou fazendo algo que “gente importante” faz. Publicar livros depende da elaboração de um trabalho excelente e contatos. Nunca considerei algum texto meu excelente, e nunca tive contatos, então, criei este espaço para publicação na internet, o qual ficou parado por um ano. Aos poucos, as experiências passadas em uma certa escrivania judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, foram renovando minha necessidade de alinhar pensamentos e sentir paz interior. Assim renasceu a necessidade de expressar o que penso e sinto através de palavras escritas. O que quero dizer é que o trabalho no cartório me inspira e foram as experiências vividas nesse ambiente de sentimentos e sensações diversas que me devolveram a vontade de escrever. O título correto deste blog seria: “é porque trabalho em cartório que sou escritor”.

Todos já ouviram a frase açucarada: “Trabalhe com o que você gosta de fazer e nunca terá que trabalhar”. Essa é uma das maiores baboseiras passadas de boca-a-boca através das gerações. Você pode fazer o que ama, porém se tiver responsabilidades, metas, prazos e qualquer forma de pressão, é trabalho. Por isso jogar bola profissionalmente é trabalho, o qual dizem, cansativo e desgastante (com remuneração absurda, mas é). Talvez o pensamento correto seja mais algo como “trabalhe com o que você gosta de fazer e irá se sentir satisfeito mesmo com todo o cansaço”. Trabalhar em uma escrivania de assistência judiciária é algo muito cansativo, porém, extremamente prazeroso, vez que amo o que eu faço.

Não, não... Meu amor é pelo Direito. Pelo cartório, tenho paixão.

Como todo objeto de paixão, o cartório me deixa angustiado e empolgado; ameniza o tédio que sinto constantemente; me força a amadurecer como pessoa ; me faz chorar; me faz sorrir; me faz perder o sono. O trabalho no fórum me faz dormir o sono dos anjos, como vovó já dizia.

Pensando bem, talvez minha relação com o cartório não seja apenas paixão. Creio que seja amor. Só o amor justifica tudo o que passamos juntos.

E o que mais gosto do trabalho no cartório: toda semana tem uma história para contar. E eu vou contar!

Bruno da 6ª

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

SUA MÃE VAI MORRER

ENSAIO SOBRE O PESSIMISMO-POSITIVO


Muito se fala sobre a busca da felicidade e o pensamento positivo como o segredo do universo. O que não contam é que essa busca resulta sempre em frustração, vez que expectativas exageradas levam a decepções e mágoas. Entendemos ser a chamada felicidade nada mais do que os raros momentos que Deus nos permite entre uma desgraça e outra em nossas vidas. A busca que todos têm como necessidade vital não deve ser por uma felicidade abstrata. Deve ser, sim, a busca por uma sensação de paz através de uma vida harmoniosa e tranqüila, eliminando a tristeza após a difícil tarefa de enxergar o mundo sem o colorido da fantasia. Sem esse trabalho de nova visão das coisas, torna-se comum confundir felicidade com empolgação. A falsa felicidade nessas situações é passageira e dependente de situações de conquista. Verdadeiramente feliz é aquele que sabe dos males e mazelas do mundo e ainda consegue se levantar para lutar. Defendemos aqui a tese do saudável pessimismo, chamado doravante de pessimismo-positivo.

Viver o pessimismo-positivo nada mais é que abrir mão da ilusão de vida segura e distante do caos que nos é imposta pela sociedade (devido a necessidade do ser humano de tornar a arte de lidar com as situações do cotidiano um pouco mais simples), aceitando, dessa forma, o lado menos prepotente das coisas. Significa ver o mundo de um modo mais realista, mais cru e, por vezes, mais cruel. O que não deve ser confundido com tristeza. Trata-se apenas de limpar o terreno (mente e alma) para que sentimentos puros, e até mesmo a tal felicidade, possam surgir naturalmente.

Abraça a idéia do pessimismo-positivo quem compreende que ter a auto-estima destruída em alguma fase da vida, uma pitada de depressão relativamente superada e dúvidas sobre seu valor e seu lugar no mundo são fatores essenciais para a construção da personalidade. Entender isso é mais difícil para os mais novos, pois as atuais regras de convivência e necessidade de projeção de suas vidas em redes sociais, aparentemente resultaram em uma verdadeira imbecialização de toda uma geração. Pessoas nascidas nos anos noventa (principalmente e, por isso, aqui usadas como exemplo) formam uma geração perdida, salvo, é claro, raríssimas exceções. Exceções essas que experimentaram ter sua auto-estima destruída em alguma fase da vida, uma pitada de depressão relativamente superada e dúvidas sobre seu valor e lugar no mundo, o que nos parece ser a verdadeira fórmula do despertar.

É de conhecimento comum que pessoas que sofreram alguma experiência dolorosa e superaram a dor, conseguindo seguir em frente, enxergam o mundo com olhar mais maduro (claro que algumas, mesmo sofrendo, continuam presas à ilusão). Não é necessário sofrer se você conseguir ter empatia o suficiente para sentir a dor de outra pessoa e assim se desenvolver a ponto de despertar para o mundo cru. Após o despertar, começa a busca pela paz, e consequentemente, o encontro da felicidade.

Para esclarecer melhor a idéia de empatia de dor, analisemos sua vida de trás para frente, começando pelo fim e concluindo no tempo presente. Que tal essa sugestão de seqüência decrescente provável de fases de sua vida? Você vai morrer! Sim, você vai... Sinto muito! Agora como será sua morte? Será que vai doer? A dor lacerante no peito. Talvez seja como um desmaio: Sentirá falta de forças... Apenas vontade de dormir em horário que não o de costume. A cabeça batendo na pia do banheiro. Algo menos agradável de ser lembrado no paraíso: a cabeça no vaso sanitário enquanto se limpava. Um mal súbito pós-defecação parece até um gracejo divino, mas vai que acontece. O objetivo do ensaio é auxiliar a traçar planos e ajudar a moldar a postura com a qual você irá seguir seu caminho. Deixo claro: ESTE TEXTO NÃO TEM O OBJETIVO DE INDUZIR AO SUICÍDIO. Deixe para morrer de causas naturais. Vai que com o tempo você percebe que não é completamente inútil. Claro que o mais provável é que você seja, afinal, sua grande preocupação é conseguir um emprego legal para comprar coisas (muitas) das quais não necessita, pagar contas apenas para sobreviver com um mínimo de dignidade e comer. Comer, dormir, talvez se exibir e defecar são as razões da sua vida.

Como fica combinado que ninguém aqui vai planejar a própria morte, vamos seguir para outra constatação: você verá sua mãe morta! Meus pêsames. Talvez você morra primeiro, ou morram juntos em um acidente de carro, mas a primeira alternativa é a mais provável. Quando ela falecer, lembranças de anos passados irão se aflorar e fazer com que perceba que brigar por ela não ter feito a comida que pediu, ou por algum problema familiar patético, ou porque não deixou você dormir fora só porque ela sabia que você ia passar a noite transando com algum idiota, acaba perdendo um pouco o sentido, não acha? É muito bonito e deprimente (vez que algo estúpido), ver familiares se aproximar na hora da dor, pedir perdão e se lamentar por não terem aproveitado mais. A dor virá. Dor é a regra. Não serei piegas e falarei algo como “abrace papai e mamãe e diga eu amo vocês enquanto pode”. Só não queira se sentir leve falando coisas bonitas e juras de amor além da vida para sua mãe quando ela já estiver no leito de um hospital, sem consciência, com uma sonda de alimentos atravessando sua barriga. Torne-se um bom filho agora, ou seja mau até o fim. Você vai sofrer por ver sua mãe sentir dor e não poderá fazer mais nada do que já está fazendo para ajudá-la. Antes disso, você vai ter alguém. Você vai perder alguém... Se aceitar o desafio, você mesmo pode preencher as reticências.

Essa idéia aparentemente estranha tem se mostrado um verdadeiro mapa para quem está se sentindo perdido. A bússola se desenvolverá dentro de você com o tempo, não se preocupe.

Maoli


(SUA MÃE VAI MORRER - Capítulo II - O sorriso da alma)

Previsão de publicação: 01.12.2011

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A VERDADEIRA MAGIA



Nesse dia das bruxas, repasso aqui uma receita rápida para a preparação de qualquer feitiço básico.

Como eu disse em mandruvás alados, na busca em algo para crer, estudei um pouco acerca de espiritismo, budismo, hinduismo, protestantismo, Santo Daime e... Wicca, o estudo do que é chamado vulgarmente de bruxaria, e posso contar algo que descobri nesse percurso: Não é por você, nem para você, que o mundo gira. Quando você morrer, algumas pessoas sentirão sua falta, mas logo se adaptarão e elas, assim como o resto do mundo, irão continuar suas vidas, mesmo sem os seus dramas particulares e suas convicções e ideologias pessoais "tão importantes". Ter plena consciência disso é a primeira metade da base para a preparação mental necessária para que se consiga conjurar qualquer feitiço e manipular uma pequena magia. A outra metade restante é querer de verdade, sem qualquer razão para peso na consciência. Desejar com pureza, sabendo que ninguém será prejudicado no caminho. Nesse momento relembro aqui a célebre frase de conhecimento popular: “Quando você deseja realmente alguma coisa, todo o universo conspira a seu favor”. Poucas pessoas sabem, mas essa crença, que pode ser compreendida como qualquer tipo de fé, é a base para a magia pura.

Vamos agora analisar o essencial de qualquer ensinamento de magia popular: preparação do ambiente, vestuário, material para a elaboração do feitiço e o principal, as falas a serem conjuradas.

Toda receita que encontrar que venha a ensinar essas coisas sem sentido, leia por curiosidade (qualquer leitura pode ser interessante) e depois ignore, pois não passa de baboseira.

A chamada Magia é simplesmente se integrar à natureza em sua essência, respeitando-a ao aceitar que não somos nada perante essa força, entender seu ritmo e tentar se adequar para obter o equilíbrio desejado. Tudo se trata apenas disso: a busca pelo equilíbrio.

A frase tradicional de halloween dita pelas crianças em frente às casas, “doces ou travessuras”, fantasiadas de demônios, representa na tradição Celta o que pode ser compreendido como forças da natureza dizendo: “me agrade que eu te agrado, ou me desagrade e sua vida se tornará uma bagunça”.

A verdadeira receita da magia pura é: Agrade a vida!

Se você quer saúde, deseje que alguém doente se cure.

Se quer amor, deseje que alguém triste fique feliz.

Se quer dinheiro, deseje que alguém consiga comprar algo de que necessite.

Se quer respeito, deseje que alguém seja respeitado.

E, quando possível, não apenas mentalize, mas faça algo!

Pode parecer piegas, mas realmente funciona. Unindo a primeira metade da base para a preparação mental, destruindo sua idéia superficial de ego e limpando a mente de ideologias e angústias banais, com a segunda metade, o desejo concentrado, você observará estranhas coincidências acontecendo em prol de seu objetivo. Desapego e foco. É o mesmo princípio bíblico que diz: Dá e receberás.

Desejar algo a outra pessoa e se mover em busca da concretização do desejo, faz com que desejem e façam de volta.

Essa é a verdadeira magia, ou fé, ou como quer que queira chamar o que pode de fato mudar a vida de alguém e consequentemente a sua.


B. C.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

VIDAS EM GOIÂNIA LESTE - Histórias dentro da História (01)

PRELÚDIO (do que um dia será um livro – publicação quinzenal)

Era manhã de domingo quando ao voltar para casa me deparei com Dona Otília, antiga moradora do fim da rua, parada, olhando para uma casa recém construída em um dos últimos lotes baldios do bairro, aparentando ver muito mais do que uma residência. Ao passar por ela, a velha senhora me encarou por milênios de segundos até que eu, naturalmente, perguntei: “Olá, Dona Otília! Tudo bem?”.

E é assim que essa história começa.

(.)


1994 - A MALHA ASFÁLTICA

Ainda olhando a casa em nossa frente, Dona Otília começou a explanar suas divagações: “Bruno, você se lembra quando o Beto vinha nesse lote pegar lenha pra fogueira da quadrilha do bairro? Você devia ter uns 10, 12 anos e vivia naquela sua bicicletinha, correndo pra cima e pra baixo deslumbrado com o asfalto. Todo ano, ele e os rapazes fechavam a rua com palha e madeira. Eles nunca mais quiseram festejar depois que o Hélio morreu (...)” [continua em 02/11]

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A SUA RAZÃO DE SER


Há muito e muito tempo atrás, em um estojo azul, localizado no canto superior direito de uma mesa de estudos muito distante, uma longa e interessante discussão cortou o esperado silêncio noturno. O motivo: a borracha resolveu que não iria mais apagar.
(...)
A borracha bradou desesperada:
_ Estou decidida! Eu irei buscar uma nova razão para minha existência. Venha comigo, lápis! Vamos escolher nosso caminho. Sua razão de ser é escrever e sempre que você a exerce eu sou gasta e logo chegarei ao fim e irei morrer. Eu não quero morrer!
O lápis, com sua postura sempre tranqüila e voz serena, prosseguiu seus esforços para acalmar sua amiga:
_ Você tem um papel muito importante no mundo, borracha! É por você existir que os humanos podem errar. Se você não mais apagar, erros jamais serão corrigidos. Não haverá volta! Mudará minha característica principal, a da liberdade de pensamentos, pois possibilito escrever tudo o que vier à mente para que depois você apague. Sem você, eu serei praticamente uma caneta.
Do lado de fora do estojo, ouvindo aquela interessante conversa, o papel se meteu na contenda:
_Não se compare à caneta, lápis! Ela nunca ousou questionar a si mesma. Aprendeu o básico do que tinha para aprender e viverá assim, satisfeita com sua soberba trivial. Talvez ela venha a questionar sua aleteia quando sua tinta estiver secando ou se esgotando. Só então ela irá pensar em tudo o que escreveu. Só então irá pensar nas marcas eternas que deixou em mim.
O papel continuou a expor seu raciocínio:
_ Pequena borracha, ouça bem. Um objeto depende da razão de ser do outro. Quando a caneta escreve em mim, eu me torno um documento para ser consultado, lido e relido, mesmo que com o passar dos anos eu me torne amarelado. Quando o lápis escreve em mim, os pensamentos livres, nem sempre, mas em sua maioria, são esboços, rabiscos, textos e desenhos não satisfeitos, não definidos, não perfeitos. Você é parte de tudo isso borracha. Sua razão de ser está ligada ao lápis de uma forma muito bonita. Vocês, borracha e lápis, formam uma dupla inseparável há gerações. O lápis sempre estará próximo de você. Sua essência, na verdade, influencia até mesmo o meu propósito. Em certo momento, após tanto apagarem o que fora transcrito em mim, eu também fico gasto, deixo de ser bonito e sem marcas. E o que acontece comigo? Consideram que perdi minha razão de ser, me dobram por todos os lados, me dão o formato de uma bola e me jogam em cestas de lixo, sendo minha derradeira honrosa e humilhante função providenciar um breve momento de diversão.
A borracha ouvia a tudo atentamente.
O papel conclui:
_ Sim, você está certa! Quanto mais o lápis escreve, mais você se consome, porém, borracha, quanto mais você se gasta, mais ele repete a escrita e gasta a si mesmo. Como conseqüência, de tempos em tempos o apontador exerce sua razão de ser e aponta o lápis, tornando-o cada vez menor...
O lápis, estranhando toda aquela simpatia, resolveu agradecer ao papel pelos sábios conselhos e retomar a conversa de modo mais particular:
_ Obrigado, papel! O senhor sempre nos auxilia com suas sábias palavras, com sua experiência adquirida pelas constantes escritas que tem recebido ao longo de sua existência. Obrigado!
O papel entendendo a indireta, limitou-se a retornar para sua pasta.
Olhando com carinho para a borracha, o lápis ponderou:
_ Você está apenas nervosa. Pense no que lhe falei e saberá o que fazer. Confio em você, minha melhor amiga. Continue seu caminho, fazendo o que faz de melhor!
E com um sorriso carinhoso, do fundo de seu coração, declarou:
_ Eu preciso de você!
Sem mais argumentos, com os olhos cheios de lágrimas, a borracha virou para o lápis e disse:
_ Sim, lápis! Agora eu entendo. Não é como indivíduos que nossa razão de ser tem sentido. Nós não podemos seguir o caminho que ansiamos, em respeito à razão de ser do objeto próximo, pois estamos interligados. Temos nossas características, habilidades e virtudes pessoais, mas é como parte do estojo que uma aleteia se encaixa na outra e, juntos, somos uma única e completa razão de ser. Muito obrigada por me fazer entender. Obrigada, querido lápis!
Assim, cada material, satisfeito com sua vida, se alojou em seu devido lugar e a paz voltou a reinar naquele estojo.
Naquela madrugada, o lápis transcreveu para o papel um sonho que o humano, dono do estojo, acabara de ter e, exausto, se encostou, distraído e só, no canto esquerdo da mesa, onde, longe dos outros materiais, ele descansou. Subitamente, sua ponta foi encoberta por um apontador que começou a girar, girar e girar com toda a sua energia. O lápis se debateu no início, mas logo perdeu suas forças e deitou-se inerte. A borracha olhou fixamente para o lápis. Um olhar ao mesmo tempo triste e decidido e, mais uma vez, respirando fundo, pegou firme o apontador e tornou a girar. E continuou girando, até que o que antes era um lápis com desígnio próprio, com a sua razão de ser, se transformou em uma pequena porção de lascas de madeira.
Após dar uma última olhada na imensidão daquele quarto, a pequenina borracha, sorrateiramente, se jogou na gaveta da mesa onde tudo ocorreu, e lá, perdida no fundo escuro de seu novo lar, em meio a tantos papéis e outros objetos há tempos esquecidos, ela viveu feliz para sempre.
FIM
BC
P.S.: A moral da história fica a critério do leitor.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Grandioso Amor, Belicosa Insanidade



Fecho seus olhos com ternura
Cubro seu corpo com respeito e devoção
Despeço-me com o amor mais puro
...
São três horas da manhã e eu acordo preocupado com você
Demoro para me lembrar que sua dor já passou
São seis horas da manhã e chamo seu nome
Seis horas e um minuto e me lembro que você não vem
...
São duas horas da manhã e eu acordo ouvindo você me chamar
Eu respondo, mesmo você não estando mais aqui:
“Estou aqui! Não tenha medo, não está sozinha!”
Não a vejo
“Estou aqui!”
...
São cinco horas da manhã e ouço seu gemido
Olho através da vidraça e procuro seus olhos
Saio a sua procura
Preciso ver que você não está lá
Apenas um ser alado da noite corta o ar que respiro...
...
Sinto a grama em que você deitava
Sinto o chão no qual você pisava
Sinto seu perfume em seu colar
O passado se torna presente
O frio da madrugada se converte em aconchego

Seu hálito quente
Em minha face

Seu olhar prepotente
Característico de quem se sabe capaz

Seu olhar bravio
Desafia a tudo

Seu olhar lânguido
Segue meus passos

Seu olhar amedrontado
Frente ao desconhecido certo
Solicita minha presença

Seu olhar vazio
Busca o último afago

Seu gosto
Seu choro
Suas manias
A falta que você me faz
...
Grandioso
Amor
Belicosa
Insanidade

Compreendo ser o desapego a morte da insônia
A beleza de sua alma não me abandonou
Aceitação
Sono

A paz que você me traz...

BC

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MANDRUVÁS ALADOS

“Venho do século passado e trago comigo todas as idades.” (Cora Coralina)

Aproveito-me da onda do politicamente correto para ter a liberdade de fazer uma analogia gay: Uma lagarta morre para que uma borboleta possa nascer? Ou será que uma borboleta só é tida como bonita porque, inseto mais maduro e experiente que é, chama a atenção de quem a vê para o colorido de seu corpo, fazendo com que ninguém olhe com zelo para a parte que não corresponde as asas, escondendo o fato de ser apenas uma lagarta nojenta que sabe voar? Bicho esperto. Aos 29 anos de idade completados, iniciando meu trigésimo ano de vida, surge a análise comum (vez que sou um coró comum), do que fiz da minha vida, de tudo que passei, dos planos não realizados cada vez mais distantes, do muito que já conquistei e apenas não percebi porque foi de forma tão natural que nem vi. A sensação de ser uma pessoa totalmente diferente de quem eu era há pouco tempo. Aquele pensamento idiota que passa na cabeça de todo mundo de vez em quando: “Se eu tivesse a mentalidade que tenho hoje naquela época... tudo teria sido diferente...”. Tudo teria sido diferente, inclusive eu hoje. Se eu me tornei quem sou, foi porque fiz do jeito que tinha que fazer. Faz sentido?

E o que eu fiz nesses 29 anos?

Nada mais chato que esses bebês-adultos. Crianças que falam como adultos sempre existiram e as que conheci e vi crescer se tornaram jovens adultos-idosos. Eu segui a linha contrária. Fui uma criança que sentia prazer em ser criança.

Andei de bicicleta, skate, patins. Aos 10 anos de idade, ia a boteco tomar baré (de biclicleta, skate ou patins) tirando onda de freqüentar ambientes toscos e “ser adulto” (tomar refrigerante que tinha o mesmo casco que cerveja era muito legal).

(ilustração para as crianças que não têm ideia do que estou falando)


Fui à banca de revistas comprar gibis, voltei lendo muito envolvido com a história e esqueci minha bicicleta lá. Fiz catequese. Pisei em macumba. Joguei bombinha no quintal da casa do padre Arraes (que Deus me perdoe). Pulei muro do colégio. Fui mordido por um cachorro enorme. Subi na torre do sino da Paróquia Imaculado Coração de Maria, quando estudava no Colégio Claretiano. Tudo culpa da tal macumba, já dizia a benzedeira que insistia para minha mãe que eu precisava de conserto.

Chorei quando cortaram os eucaliptos da curva do eucalipto (um dia contarei essa história).

Ficava sentado na calçada, ou na pracinha, conversando com os meninos da vizinhança todas as noites.

Aos 12 anos de idade, empolguei com Guns. Descobri o rock’n roll. Usei jaqueta preta, corrente com crucifixo enorme, anéis de caveira e deixei o cabelo ficar enrolado. Na minha cabeça eu era mau. Revendo fotos, eu era apenas um magrelinho nerd fazendo careta. Não importa a roupa. O estilo magrelinho-nerd sempre foi a parte determinante. Pegava emprestado livros de romance policial na biblioteca da praça cívica.

Chorei quando perdi cães que eu amava. Sempre nos apegamos aos animais, mas quando crescem com a gente é mais difícil separar as coisas.

Já fiz alguém sorrir.

Fui um adolescente que curtia budismo, até descobrir sobre bruxaria (e, claro, me empolgar). Apenas mais um menino patético empolgado com a onda new age da virada do milênio. Adolescentes têm direito de serem patéticos, não é? Estudei um pouco acerca de espiritismo, budismo, hinduismo, protestantismo, Santo Daime, wicca, seicho-no-ie, ateísmo, até perceber que tudo fala da mesma coisa, então, nada importa.

Já fiz alguém chorar.

Já vi disco voador.

Fiz pipoca e comecei a cantarolar a música do comercial de refrigerante. Fui um adolescente criticado por gostar de coisas de criança. Fui comprar refrigerante. Ainda nessa época entendi o poder da boa publicidade. Resolvi cursar Publicidade.

Já quis morrer.

Descobri que dinheiro vem antes de satisfação pessoal.

Resolvi que faria curso de Direito.

Chorei quando perdi alguém que eu amava. Olhando a lua cheguei à conclusão: “Morrer para que, se a lua é tão bonita?”.

Encontrei a mulher cujas características se encaixam na descrição do que a vidente viu. Ainda não fiz dinheiro. Ainda me entusiasmo com propagandas. Tornei-me um adulto que se empolga como criança.

É... Pensando assim, borboletas não passam de mandruvás com asas, voando por aí, sendo admirados. Corós lindos.

Ah, pisar na macumba foi legal!


Bruno César

quarta-feira, 27 de julho de 2011

PÁSSAROS QUE LATEM - Capítulo VI

O MUNDO LÁ EMBAIXO, A MUDA E O CICLO DA VIDA

Mesmo com o silêncio conquistado por estar confortavelmente a tantos quilômetros de altura, ela não se permitia enganar. Todo aquele movimento lá embaixo, o alvoroço que ela via com seu olhar de águia, só indicava uma coisa: Todos os animais do vale estavam ansiosos pelo regresso da Mãe Natureza. Porém, ele ainda não havia chegado. “Onde está ele? Não o vejo em local algum... Onde está o cão?”.

A arara-azul olha o horizonte, pensando no que virá, e logo sua mente se projeta para o passado, lembrando do que viveu até chegar àquele momento. Como ocorre em toda morte, antes de um novo renascer, sua vida se repassa diante de seus olhos.
...

“Um dia eu vou voar até lá em cima! Vou voar e voar!”. Aquela pequena voz inocente, que um dia fora sua, ecoou em sua cabeça. “Minha Mãe Natureza, quanto tempo faz?”. Sua mente, então, se esvai totalmente.
A arara se lembra que, ao sair do ninho, entre lágrimas e sorrisos, o cão disse suas últimas palavras como Pássaro-mais-velho: “Em breve você deixará de existir. O brilho nos seus olhos, o modo como bate suas asas e até mesmo seu grasnar irão mudar. Você se tornará outro ser, e assim que este novo ser cumprir sua razão de existir, novamente você irá mudar e se tornará um outro novo ser. Quero que me prometa uma coisa. Quero que me permita conhecer quem você irá se tornar”.
Ela havia encontrado o cão uma única vez. Foi pouco depois de sair do ninho, após conhecer a arara-vermelha, com a qual viria a formar um interessante casal, afinal, acompanhada de outra arara, ela não estaria sozinha. Nessa época, ela parecia absorver as habilidades de outras aves. Desenvolveu características como as da ave mais rápida, a mais resistente, a que mergulha (viu um mergulhão ir metros abaixo d’água atrás de peixe e resolveu que também conseguiria. Ela pegava os peixes e os comia, se secando primeiro, para que a arara-vermelha não desconfiasse), a que sobrevive ao frio, a que reage bem ao calor, a que voa mais alto, a melhor de caça, a que tem o canto mais bonito. Isso fez com que outras araras se afastassem dela. Ora, que tipo de arara era aquela, que tipo de pássaro era aquele? E, assim, entristecida, ela sentia que não se encaixava mais em nenhum bando.
Um dia, a arara-azul recebeu um recado de uma curicaca. O cão queria vê-la! Seu coração bateu forte. No caminho de volta ao ninho, agora como visitante, ela apenas pensava em não deixar transparecer o que estava sentindo e vivendo, pois queria mostrar ao cão que estava indo bem, voando longe do local em que fora criada. Ao pousar, a arara-azul se sentou e olhou para seu antigo Pássaro-mais-velho, procurando sorrir e demonstrar uma satisfação que na verdade não sentia. O cão, imponente perante a fragilizada ave, limitou-se a perguntar: “Por que está chorando?”. A arara não esperava tal pergunta, mas, no fundo, sabia que não conseguiria enganar o cão. Engasgou um pouco, respirou fundo, e então falou: “Não sei... talvez eu esteja chorando porque parece que o mundo que eu conhecia não existe mais. Porque o ninho seguro e tranqüilo no qual eu me apoiava, e no qual parecia que nada iria me atingir aparenta ter simplesmente desabado... Não reconheço mais nada em minha volta... Não reconheço meus sentimentos, as aves que me cercam, as emoções que me atingem, a indiferença que tomou conta de mim. E, o pior, não entendo como vim parar aqui, como tudo me trouxe nesse emaranhado de estranheza. Costumava ter sob meu controle --- ou, pelo menos, sob meu conhecimento --- tudo que me envolvia. Conhecia bem meu bando e os pássaros-irmãos. Sabia como voar bem, como agir com todos, como agradar a todos e, mesmo assim, manter aquela centelha crítica bem acesa dentro de mim. Agora não tenho ideia do que faço nesse novo bando e --- por mais que eu me esforce --- não consigo agradar ninguém, não sei como lidar com eles. Conhecia bem meus vôos com a arara-vermelha, tinha confiança de como e com quem estava voando, mas agora não sei mais como agir, não reconheço quem é a ave com quem estou. Conhecia meus medos. Sabia que boa parte das coisas que sempre me incomodaram não passava de medo, insegurança. Agora surgiram medos novos, provindos não sei de onde, que me angustiam, tiram noites de sono. Por isso estou chorando. Queria que tudo voltasse a fazer sentido!”.
O cão continuou olhando para a arara-azul por longos minutos, para então responder: “Você não é mais apenas uma admirável arara. Um dia você irá descobrir que animal você se tornou por dentro. E, assim, ciente de quem é, irá mostrar a todo o vale esse novo ser. Seu novo eu conseguirá viver a paz que tanto procura!”.
Assim que o cão se foi, sozinha, no que restava do ninho que um dia chamou de lar, a arara-azul começou a arrancar suas próprias penas, uma a uma e quando não havia mais penas a arrancar, ela arrancou suas garras.
...

Tantas recordações... Subitamente algo faz com que as lembranças se esvaiam. A arara falou baixinho para si mesma com um leve sorriso de satisfação: “Ele chegou!”. Os passos do cão podiam ser ouvidos minutos antes de sua chegada, vez que a arara, durante sua criação, desenvolvera alguns sentidos de seu mentor, dentre eles, a audição canina. Logo seu corpo se projetou na subida da colina, seus olhos sempre à frente, sua mente ainda experimentando as sensações da reunião com o beija-flor, durante a última grande tempestade.

A arara abriu suas asas. Desceu planando tranquilamente, até pousar em frente ao cão que, admirado com aquela postura imponente que a arara-azul adquiriu, limitou-se a sentar-se e dizer olá a sua amiga.
Com olhos novamente brilhantes, a arara disse: “Olá, irmão-cão!”. O cão respondeu: “Olá, minha amiga! Transformar-te novamente em um novo e lindo ser. Semelhante e tão diferente de quem era quando a vi pela última vez. Permita-me conhecê-la. Mostre-me quem você é agora! Diga-me irmã-arara: por que está sorrindo?”.

A arara-azul então respondeu: “Não sei... Talvez eu esteja sorrindo por perceber que minha vida só está seguindo o caminho que escolhi para que ela seguisse, ao tomar minhas decisões. Se agora estou voando por ares que temo e desconheço é porque escolhi sair do meu ninho-seguro, onde eu confiava em mim e nas outras aves, além de ter um Pássaro-mais-velho maravilhoso. Se enfrento problemas nos meus vôos com a arara-vermelha, é porque escolhi continuar voando assim, mesmo quando percebi que não havia mais razões para tal. É porque sou covarde e morro de medo de voar sozinha. Se meu bando mudou comigo, deve ser porque eu mudei primeiro. Porque me distanciei, me fechei... Se meus medos mudaram, talvez isso não seja tão ruim. Deve significar que amadureci e que aqueles medos anteriores não me afligem mais. Por isto estou sorrindo! Talvez eu apenas tenha aprendido a ver o mundo por um ângulo mais positivo. Ou talvez eu esteja ficando louca!”.

O cão a olhou, sorriu, e falou calmamente: “Estou orgulhoso de você, irmã. Você se tornou uma majestosa harpia-azul”.

De repente o silêncio domina a floresta. Todos os animais estão a postos, ansiosos, contentes: A Mãe Natureza chegou para, mais uma vez, lhes informar as missões a que cada um estaria destinado – ela notava nos olhos dos animais qual era seu destino. Ela não distribuía realmente as missões, ela apenas informava e orientava.

A Mãe Natureza se aproximou da harpia-azul. Olhou em seus olhos. Olhou e olhou e então sorriu. Com um sorriso verdadeiramente faceiro disse: “Ora, ora... mas é claro...”. Ela olhou para trás e, com um assovio, três lindos cãezinhos se apresentaram. Olharam com curiosidade para a harpia-azul, pois nunca tinham visto um cão assim.

A harpia-azul, mesmo tendo sempre muito respeito pela solenidade do evento, olhou para o cão de modo a se fazer entender que aquilo demonstrava o sentido mais que perfeito das coisas. Ela sente novamente que há lugar para ela no mundo. O cão sorriu e aquela que um dia foi um delicado passarinho sonhador, que se tornara uma linda arara-azul, era agora uma harpia com a bela missão de ser, para aqueles cachorrinhos, o Cão-mais-velho.


B.C. *coautoria de Ana Carolina Santos

* CAPÍTULO I DE PÁSSAROS QUE LATEM: Uma estranha união

domingo, 17 de abril de 2011

PÁPRICA


Ela abre os olhos e observa a meia luz que passa por entre as frestas da cortina, sem saber ao certo se está amanhecendo ou se é entardecer. Franze um pouco a testa quando começa a se lembrar da dura decisão que terá que tomar muito em breve. Mesmo assim, está satisfeita, pois experimentou a leveza da maior liberdade que alguém pode sentir: esquecer o próprio tempo. Abre as janelas e contempla as cores do céu límpido.

Olhar vazio.

Páprica
 
O céu estava alaranjado. Sentado em sua cadeira nos fundos de sua casa, como de costume, ele contemplou o jogo de cores celestes. Um pouco de azul, uma pitada de rosa, mas, em sua maioria, algo meio laranja. Concentrou-se tanto nisso que não se lembrava mais dos motivos que o levaram a divagar.
 
Respirou fundo. Sentiu a brisa. Fechou os olhos.
 
Páprica.
 
Ao mesmo tempo, ela abre a porta de sua casa depois de um dia de trabalho. Dois ônibus lotados durante o caminho feito em companhia de pessoas com todo tipo de aroma. De cheiro ocre a um exagero de baunilha. “Graças a Deus, cheguei!”. Poderia ser melhor, mas está em casa e é isso o que importa. 
 
Ela tranca a porta, já remoendo o dia que passou.
 
Páprica.
 
Longe dali, ainda sentindo o gosto de sua bebida, ele a olha penteando os cabelos, admirando o realce de sua pele clara face ao castanho escuro dos fios. Percebendo que está sendo observada, ela olha para trás com um sorriso faceiro e volta para cama. Ele a abraça e, sentindo o suave toque de seus seios nus contra sua barriga, beija-a pouco acima dos olhos e encosta carinhosamente o queixo sobre sua cabeça, olhando fixamente para o nada.
 
Observa, concentrado, a parede cor creme à sua frente, projetando de sua mente algumas cenas de sua vida.
 
Páprica.
 
Praticando caminhada (o único esporte em que era bom, mesmo alguns dizendo que ele andava de um jeito estranho), resolveu seguir por uma trilha diferente dessa vez, então... virou à esquerda por uma rua que nunca tinha ido. O ar frio entrava por suas narinas e lhe dava a sensação de lhe limpar por dentro. A cada expiração, uma sensação agradável. Mas como sempre acontece, em determinado momento, teve que voltar. Voltar pelo mesmo caminho de sempre. Voltar ao começo de tudo. Voltar sempre. 
 
Olhou aquele caminho levemente tortuoso. Sempre.
 
Páprica.
 
Permanecia olhando para o fogão há uns dez minutos como que se preparando para um desafio. Estava aprendendo a cozinhar. Tinha que aprender, oras. Separou todos os ingredientes, acendeu a chama, calculou exageradamente a quantidade de óleo a colocar na panela. Mexeu sempre, como aconselhado. Adicionou água até a altura determinada. Contou os minutos olhando para o relógio. O cheiro exalado indicava que estava no caminho certo. Aguardou pacientemente a hora de degustar. Aprendeu a ter paciência, que sempre lhe disseram ser fundamental. Estava pronto. Tudo estava dentro dos parâmetros: havia consistência, estrutura homogênea, superfície dourada, interior quente e úmido, como deveria ser. Mais um pouco e passava do ponto. Resolveu saborear. Insosso. Mas estava tão perto. Uma leve salpicada de algo que ainda não conhecia e a receita estará pronta. Falta apenas uma coisa.
 
Falta páprica.

BC

sábado, 12 de março de 2011

A DANÇA DA BIPOLARIDADE




















(Bruno César Machado de Oliveira)

Na sensual dança da bipolaridade, passei alguns dias deprimido.

Sensação de vazio.

Cheiro de café.

Sons ao longe.

Abri os olhos.

Sábado.

Vontade de mudar de pólo.

Manhã fria.

Cheiro de pipoca.

Deitei no chão do quintal.

Comecei a tirar fotos de nuvens.

(Quis saber se mais alguém vê os mesmos desenhos que eu vejo).

Nuvens mais escuras.

Chuva leve.

Banho de chuva.

Brisa agradável.

Cheiro de vida.

Raios de sol no rosto.

Nuvens mais claras.

Novos desenhos.

Uma das nuvens se sentiu à vontade comigo e resolveu revelar seu rosto.

Foi incrível.

Um pouco assustador.

Eu também estava sendo observado.

Espero que tal grandiosa face tenha gostado dos desenhos que viu em mim.

Vontade de me espreguiçar.

Sensação de plenitude.

Um sorriso.

Acordei.

Estou de volta.


(BC Maoli)

domingo, 16 de janeiro de 2011

AMOR AO PRIMEIRO SORRISO

Sonhei com uma garota tempos atrás. Há meses, já não sei quantos. Anos talvez. Ela tinha um olhar doce e uma postura firme. Aparentava tristeza. No sonho, caminhávamos juntos enquanto ela me contava sobre algo ruim que acontecera com ela e eu a confortava.

Durante o caminho, falei alguma coisa idiota que serviu ao mesmo tempo para devolver a ela o brilho no olhar e para eu receber um tapa nos ombros, desses que só ganhamos de quem gosta da gente, e foi então que percebi algo mágico. Eu a fiz sorrir. O sorriso mais puro, iluminado pelo brilho encantador de seus olhos deu a mim uma leveza na alma que não me lembro de antes ter sentido. Eu estava renovado. A turbulência de meus planos auto-sabotadores, a dor de carregar enorme rancor no coração e o peso de minha alma cansada simplesmente desapareceram com aquele sorriso.

Foi, então, que eu acordei.

A sensação era de uma lembrança boa de algo que realmente havia acontecido há pouco tempo. Demorei alguns segundos para entender que eu nunca havia visto aquela menina e ainda aceitar que talvez... não talvez, provavelmente, ela nem exista realmente. Fiquei triste quando entendi que era apenas um sonho, mas, ao mesmo tempo, algo curioso me chamou a atenção.

A depressão desapareceu.

Anos e anos de amargura e passos descrentes, degraus decrescentes. Parado no tempo enquanto olhava com olhos opacos o mundo girar com toda sua força. Despertando diariamente me lamentando por não ter morrido enquanto dormia. Tudo se foi com um sonho, sem deixar qualquer vestígio. Era ainda madrugada, abri a janela, olhei para cima e observei placidamente o infinito celeste. Morrer para que, se a lua é tão bonita? Minha alma se tornou leve e com vontade de vida como a de uma criança. Quem me conhece hoje, jamais imagina quem eu fui e me divirto com as tentativas frustradas que alguns tem em entender quem eu sou.

Eu sou um homem que vive a procura do sorriso que viu em um sonho.

Bruno César Machado de Oliveira