quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A SUA RAZÃO DE SER


Há muito e muito tempo atrás, em um estojo azul, localizado no canto superior direito de uma mesa de estudos muito distante, uma longa e interessante discussão cortou o esperado silêncio noturno. O motivo: a borracha resolveu que não iria mais apagar.
(...)
A borracha bradou desesperada:
_ Estou decidida! Eu irei buscar uma nova razão para minha existência. Venha comigo, lápis! Vamos escolher nosso caminho. Sua razão de ser é escrever e sempre que você a exerce eu sou gasta e logo chegarei ao fim e irei morrer. Eu não quero morrer!
O lápis, com sua postura sempre tranqüila e voz serena, prosseguiu seus esforços para acalmar sua amiga:
_ Você tem um papel muito importante no mundo, borracha! É por você existir que os humanos podem errar. Se você não mais apagar, erros jamais serão corrigidos. Não haverá volta! Mudará minha característica principal, a da liberdade de pensamentos, pois possibilito escrever tudo o que vier à mente para que depois você apague. Sem você, eu serei praticamente uma caneta.
Do lado de fora do estojo, ouvindo aquela interessante conversa, o papel se meteu na contenda:
_Não se compare à caneta, lápis! Ela nunca ousou questionar a si mesma. Aprendeu o básico do que tinha para aprender e viverá assim, satisfeita com sua soberba trivial. Talvez ela venha a questionar sua aleteia quando sua tinta estiver secando ou se esgotando. Só então ela irá pensar em tudo o que escreveu. Só então irá pensar nas marcas eternas que deixou em mim.
O papel continuou a expor seu raciocínio:
_ Pequena borracha, ouça bem. Um objeto depende da razão de ser do outro. Quando a caneta escreve em mim, eu me torno um documento para ser consultado, lido e relido, mesmo que com o passar dos anos eu me torne amarelado. Quando o lápis escreve em mim, os pensamentos livres, nem sempre, mas em sua maioria, são esboços, rabiscos, textos e desenhos não satisfeitos, não definidos, não perfeitos. Você é parte de tudo isso borracha. Sua razão de ser está ligada ao lápis de uma forma muito bonita. Vocês, borracha e lápis, formam uma dupla inseparável há gerações. O lápis sempre estará próximo de você. Sua essência, na verdade, influencia até mesmo o meu propósito. Em certo momento, após tanto apagarem o que fora transcrito em mim, eu também fico gasto, deixo de ser bonito e sem marcas. E o que acontece comigo? Consideram que perdi minha razão de ser, me dobram por todos os lados, me dão o formato de uma bola e me jogam em cestas de lixo, sendo minha derradeira honrosa e humilhante função providenciar um breve momento de diversão.
A borracha ouvia a tudo atentamente.
O papel conclui:
_ Sim, você está certa! Quanto mais o lápis escreve, mais você se consome, porém, borracha, quanto mais você se gasta, mais ele repete a escrita e gasta a si mesmo. Como conseqüência, de tempos em tempos o apontador exerce sua razão de ser e aponta o lápis, tornando-o cada vez menor...
O lápis, estranhando toda aquela simpatia, resolveu agradecer ao papel pelos sábios conselhos e retomar a conversa de modo mais particular:
_ Obrigado, papel! O senhor sempre nos auxilia com suas sábias palavras, com sua experiência adquirida pelas constantes escritas que tem recebido ao longo de sua existência. Obrigado!
O papel entendendo a indireta, limitou-se a retornar para sua pasta.
Olhando com carinho para a borracha, o lápis ponderou:
_ Você está apenas nervosa. Pense no que lhe falei e saberá o que fazer. Confio em você, minha melhor amiga. Continue seu caminho, fazendo o que faz de melhor!
E com um sorriso carinhoso, do fundo de seu coração, declarou:
_ Eu preciso de você!
Sem mais argumentos, com os olhos cheios de lágrimas, a borracha virou para o lápis e disse:
_ Sim, lápis! Agora eu entendo. Não é como indivíduos que nossa razão de ser tem sentido. Nós não podemos seguir o caminho que ansiamos, em respeito à razão de ser do objeto próximo, pois estamos interligados. Temos nossas características, habilidades e virtudes pessoais, mas é como parte do estojo que uma aleteia se encaixa na outra e, juntos, somos uma única e completa razão de ser. Muito obrigada por me fazer entender. Obrigada, querido lápis!
Assim, cada material, satisfeito com sua vida, se alojou em seu devido lugar e a paz voltou a reinar naquele estojo.
Naquela madrugada, o lápis transcreveu para o papel um sonho que o humano, dono do estojo, acabara de ter e, exausto, se encostou, distraído e só, no canto esquerdo da mesa, onde, longe dos outros materiais, ele descansou. Subitamente, sua ponta foi encoberta por um apontador que começou a girar, girar e girar com toda a sua energia. O lápis se debateu no início, mas logo perdeu suas forças e deitou-se inerte. A borracha olhou fixamente para o lápis. Um olhar ao mesmo tempo triste e decidido e, mais uma vez, respirando fundo, pegou firme o apontador e tornou a girar. E continuou girando, até que o que antes era um lápis com desígnio próprio, com a sua razão de ser, se transformou em uma pequena porção de lascas de madeira.
Após dar uma última olhada na imensidão daquele quarto, a pequenina borracha, sorrateiramente, se jogou na gaveta da mesa onde tudo ocorreu, e lá, perdida no fundo escuro de seu novo lar, em meio a tantos papéis e outros objetos há tempos esquecidos, ela viveu feliz para sempre.
FIM
BC
P.S.: A moral da história fica a critério do leitor.

3 comentários:

  1. Meu amor, esperei a tarde e a noite todas por esse texto!
    E digo que valeu a pena cada minuto!
    Começar um texto fofo e depois terminá-lo com um crime foi bastante legal!
    ADOREI!!!

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  2. Sem você, eu serei praticamente uma caneta...Texto incrível, inteligente, profundo, demais!!!

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  3. Nóo... minha moral foi essa: "não importa se determinada coisa completa sua função no tempo e no espaço...se te desgastar, te diminuir, te matar aos poucos, é melhor procurar outra razão de ser."

    Amei,amei,amei,brother!

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