Do alto no ninho, sentado em
posição de vigilância, o cão refletia acerca das consequências dos últimos
acontecimentos, enquanto os passarinhos trabalhavam na reconstrução de seu lar.
Sem qualquer aviso, som ou cheiro, uma presença inadvertidamente surgiu ao seu
lado.
_ Olá, Mãe Natureza! É sempre um
prazer revê-la – disse o cão, mantendo-se imóvel.
_ Olá, irmão-cão! – a Mãe
Natureza levantou a cabeça, encheu os pulmões, e continuou – Ah, como estou
feliz por voltar aqui! Estava com saudade da energia de seu ninho.
_ A senhora é sempre bem-vinda,
Mãe, mas imagino que não tenha vindo apenas para nos agraciar com sua visita.
Ela sorriu e, afagando a orelha
do cão, respondeu:
_ Você está certo. É chegada a
hora de, mais uma vez, distribuir as missões e eu vim pessoalmente para lhe
dizer que é a vez de um pássaro assumir o ninho. Você, meu querido cão, não é
mais o Pássaro-mais-velho.
...
PÁSSAROS QUE LATEM – Capítulo XV
O segredo da Mãe Natureza
O cão reuniu seus protegidos no
centro do ninho e explicou sobre os novos ares que estavam por vir. A
anunciação foi interrompida quando alguns se levantaram e bateram suas asas de
modo agitado:
_ Não é justo! A grande
tempestade, para a qual fomos preparados desde o início, finalmente passou e
agora que já estamos reestruturando o ninho vem um pássaro? Tudo parece em
equilíbrio, mas ainda há muito a se fazer – disse o sabiá.
_ Será muito estranho ser
aprendiz de um animal que não seja um cão – disse a aracuã.
Sabendo que não há outro modo de
reagir às determinações da mãe natureza a não ser aceitar, a irmã-cadela se
deitou e colocou a cabeça entre as patas. A irmã-suçuarana, anteriormente o
gatinho inseparável e já há algum tempo um ser grande demais para o ninho, vira
de costas e diz não aceitar. Ela adora os passarinhos, mas sente a necessidade
de encontrar outros de sua espécie. O ninho já havia se tornado pequeno demais
para ela e agora sente que não haverá mais razão para continuar ali.
E em meio a piados, grasnados e
resmungos, o cão continou:
_ Eu também não entendo, meus pequenos.
Depois de todos esses ciclos, de tantas chuvas torrenciais, ser um
Pássaro-mais-velho tornara-se algo quase natural, mas as decisões da Mãe
Natureza estão além de nossa compreensão e cabe a nós, como seus filhos,
respeitá-la sem questionar.
_ Não há um porque de tanta
comoção. – disse o pequeno filhote de coruja, com sua penujem destoando de seu
olhar de sapiência, a qual vem mais de sua natureza do que de experiências
vividas - Você não é um pássaro e merece ser mais do que um pássaro. Mas também
não é mais um canídeo. Você ainda parece um cão, mas se tornou um outro ser e um
dia irá mostrar ao vale que animal você se tornou.
O cão sorri:
_ Obrigado, minha pequena
corujinha. Tenho a impressão de já ter ouvido suas sábias palavras em algum
lugar. Meus passarinhos, toda mudança, de certa forma é positiva. Há certas
coisas que apenas um pássaro é capaz de fazer e será bom que treinem certas
habilidades próprias de aves, como diferentes técnicas de voo. O novo Pássaro-mais-velho
está vindo cumprir a missão que recebeu e pousará entre nós a qualquer momento.
Eu quero que me prometam uma coisa: não se esqueçam do que aprenderam aqui.
Respeitem aquele que será o Pássaro-mais-velho deste ninho e ele respeitará
vocês. Quem sabe vocês não possam ensiná-lo alguns truques. Todos do vale sabem
que vocês não são meras aves e isso não irá mudar. Olhem, ele está chegando:
_ Olá, irmão-cão. Há quantos
ciclos!
_ Seja bem-vindo de volta, irmão-tiê.
Meus passarinhos não poderiam estar sob melhores asas. Boa sorte em sua
jornada. Cuide de meus pequeninos.
O cão olhou para trás uma última
vez. As pequenas aves se juntaram ao seu redor e deram as asas, formando um
círculo, que representa tudo o que foi e tudo o que um dia irá ser.
...
E assim, o velho cão deixou o
ninho que tentou construir. Enquanto seguia sua jornada, cujo caminho sentia
que precisava percorrer, se lembrou das palavras da Mãe Natureza, ditas após o
anúncio do fim de sua incumbência, esclarecendo as motivações de sua decisão, e
que agora ecoavam em sua mente:
“Olhe ao seu
redor, irmão-cão. Tudo ficou claro para mim quando eu observei a nova geração
de seus aprendizes. Eu dei a você uma missão: cuidar de jovens passarinhos.
Veja o que aconteceu. Os Pássaros que Latem se espalharam por todo o vale. Não
são mais um grupo. Eles se tornaram uma nova espécie. E cada pássaro ao sair de
seu ninho e voar por conta própria se tornou capaz de criar um novo Pássaro que
Late na árvore em que foi pousar. O falcão está sempre de guarda; a coruja o
ajuda na instrução dos mais jovens; o bem-te-vi sempre alerta fiscalizando cada
voo; o tucano quebra os alimentos mais duros para facilitar a alimentação dos
pássaros que não desproveem de seu poderoso bico colorido; a cambacica não espera
mais o período de floração e aprendeu a semear árvores frutíferas para se
alimentar das flores que quisesse, além de ajudar na alimentação de outros que
dependem de frutos, mas ainda são jovens demais, como o sanhaço. Outros, assim
como foi com a harpia, ensinam cãezinhos a semear. Só há razão de ser,
irmão-cão, aquilo que ainda não chegou. Não haverá fim para essa nova realidade
e, portanto, não há mais nada a se fazer aqui. Estou satisfeita. Um dia, você
aceitou com relutância a sua missão. Agora aceite que você a cumpriu. Aceite.
Sua missão terminou.”
“Terminou...” – repete
mentalmente o cão – “Terminou”. Ele adentrou na Floresta de Eucaliptos, que os
passarinhos cultivaram; atravessou o Deserto de Ametista, assim como o Bosque das
Árvores Secas; subiu pelo Riacho da Cascata Ascendente; descansou um pouco sob
a Árvore-do-que-poderia-ter-sido e lá conversou um pouco com o protetor do
lugar, o filho da água; correu, pulando e latindo, satisfeito, pelo Jardim das
Margaridas e se encostou entre o Eucalipto Centenário e a Pedra do Firmamento.
Ali, deitado, repensou em tudo o que passou, olhou para a lua e disse o último
“muito obrigado!”. O cão respirou fundo. Sentiu-se feliz pelo cheiro agradável
de musgo e terra. Colocou a cabeça entre as patas, fechou seus olhos e,
finalmente, se tornou um com a natureza.
Uma brisa fria percorreu por todo
o vale. Longe dali, o beija-flor, que estava treinando seus novos protegidos,
parou no ar e voou para cima, rápido e em silêncio; do outro lado da floresta,
a harpia-azul fitou seus cãezinhos, os quais atendendo o olhar foram para a
toca e se deitaram, esperando seu retorno. Da mesma forma, os oito passarinhos
que estavam aos cuidados do novo Pássaro-mais-velho, assim como dezenas de
outras aves, que quando filhotes aos cuidados do cão se destacaram entre os
seus e que agora lideravam pequenos grupos de animais, repassando o que
aprenderam, voaram e pousaram no topo das árvores mais altas. Olharam para lua,
respiraram fundo, abriram suas asas e uivaram. Uivaram por toda a noite.
Naquela noite, ouvia-se o uivo em
uníssono dos Pássaros que Latem e nada mais além.
...
DIAS DEPOIS.
_ Levanta e venha comigo! – disse
a Mãe Natureza. Disse e foi para o alto da montanha central.
O ser que um dia foi um cão abre
os olhos, olha para o que se tornou e sorri. Ele se levanta e voa até onde está
a Mãe Natureza, e de lá seguem voando juntos observando e acompanhando, de um
horizonte ao outro, o desenvolvimento daqueles que serão, para sempre, os seus
passarinhos.
FIM
Era uma vez um cão de rua que
treinava a si mesmo, que um dia recebeu a missão de ser um Pássaro-mais-velho,
que travou batalhas e sobreviveu a tempestades, que viu seus pequenos pássaros
crescerem e receberem eles próprios as suas missões, que mereciam ou
necessitavam, e que conseguiu da mãe natureza, por meio de uma estranha missão,
aquilo que mais desejou: ser livre.
BC
P.S.: Com essa missão, eu aprendi
mais do que ensinei. Obrigado por tudo, meus passarinhos! Muito obrigado!
Achei que ia me emocionar só com o texto. Quando vi o "símbolo" que passamos uma semana tentando definir em texto e a foto não deu para segurar!
ResponderExcluirFoi um ciclo lindo, e te garanto que aprendi muito mais com você como o imortal chefe-brother, como meu pássaro mais velho, do que aprendi em qualquer outra fase.
Definitivamente, a hárpia se transformou de dentro para fora depois de ser chefiada pelo Cão.
O bom dos ciclos é que ao terminar um, outro logo o segue, e o cão é realmente muito mais do que um pássaro mais velho e merece vôos muito mais altos!