quarta-feira, 27 de julho de 2011

PÁSSAROS QUE LATEM - Capítulo VI

O MUNDO LÁ EMBAIXO, A MUDA E O CICLO DA VIDA

Mesmo com o silêncio conquistado por estar confortavelmente a tantos quilômetros de altura, ela não se permitia enganar. Todo aquele movimento lá embaixo, o alvoroço que ela via com seu olhar de águia, só indicava uma coisa: Todos os animais do vale estavam ansiosos pelo regresso da Mãe Natureza. Porém, ele ainda não havia chegado. “Onde está ele? Não o vejo em local algum... Onde está o cão?”.

A arara-azul olha o horizonte, pensando no que virá, e logo sua mente se projeta para o passado, lembrando do que viveu até chegar àquele momento. Como ocorre em toda morte, antes de um novo renascer, sua vida se repassa diante de seus olhos.
...

“Um dia eu vou voar até lá em cima! Vou voar e voar!”. Aquela pequena voz inocente, que um dia fora sua, ecoou em sua cabeça. “Minha Mãe Natureza, quanto tempo faz?”. Sua mente, então, se esvai totalmente.
A arara se lembra que, ao sair do ninho, entre lágrimas e sorrisos, o cão disse suas últimas palavras como Pássaro-mais-velho: “Em breve você deixará de existir. O brilho nos seus olhos, o modo como bate suas asas e até mesmo seu grasnar irão mudar. Você se tornará outro ser, e assim que este novo ser cumprir sua razão de existir, novamente você irá mudar e se tornará um outro novo ser. Quero que me prometa uma coisa. Quero que me permita conhecer quem você irá se tornar”.
Ela havia encontrado o cão uma única vez. Foi pouco depois de sair do ninho, após conhecer a arara-vermelha, com a qual viria a formar um interessante casal, afinal, acompanhada de outra arara, ela não estaria sozinha. Nessa época, ela parecia absorver as habilidades de outras aves. Desenvolveu características como as da ave mais rápida, a mais resistente, a que mergulha (viu um mergulhão ir metros abaixo d’água atrás de peixe e resolveu que também conseguiria. Ela pegava os peixes e os comia, se secando primeiro, para que a arara-vermelha não desconfiasse), a que sobrevive ao frio, a que reage bem ao calor, a que voa mais alto, a melhor de caça, a que tem o canto mais bonito. Isso fez com que outras araras se afastassem dela. Ora, que tipo de arara era aquela, que tipo de pássaro era aquele? E, assim, entristecida, ela sentia que não se encaixava mais em nenhum bando.
Um dia, a arara-azul recebeu um recado de uma curicaca. O cão queria vê-la! Seu coração bateu forte. No caminho de volta ao ninho, agora como visitante, ela apenas pensava em não deixar transparecer o que estava sentindo e vivendo, pois queria mostrar ao cão que estava indo bem, voando longe do local em que fora criada. Ao pousar, a arara-azul se sentou e olhou para seu antigo Pássaro-mais-velho, procurando sorrir e demonstrar uma satisfação que na verdade não sentia. O cão, imponente perante a fragilizada ave, limitou-se a perguntar: “Por que está chorando?”. A arara não esperava tal pergunta, mas, no fundo, sabia que não conseguiria enganar o cão. Engasgou um pouco, respirou fundo, e então falou: “Não sei... talvez eu esteja chorando porque parece que o mundo que eu conhecia não existe mais. Porque o ninho seguro e tranqüilo no qual eu me apoiava, e no qual parecia que nada iria me atingir aparenta ter simplesmente desabado... Não reconheço mais nada em minha volta... Não reconheço meus sentimentos, as aves que me cercam, as emoções que me atingem, a indiferença que tomou conta de mim. E, o pior, não entendo como vim parar aqui, como tudo me trouxe nesse emaranhado de estranheza. Costumava ter sob meu controle --- ou, pelo menos, sob meu conhecimento --- tudo que me envolvia. Conhecia bem meu bando e os pássaros-irmãos. Sabia como voar bem, como agir com todos, como agradar a todos e, mesmo assim, manter aquela centelha crítica bem acesa dentro de mim. Agora não tenho ideia do que faço nesse novo bando e --- por mais que eu me esforce --- não consigo agradar ninguém, não sei como lidar com eles. Conhecia bem meus vôos com a arara-vermelha, tinha confiança de como e com quem estava voando, mas agora não sei mais como agir, não reconheço quem é a ave com quem estou. Conhecia meus medos. Sabia que boa parte das coisas que sempre me incomodaram não passava de medo, insegurança. Agora surgiram medos novos, provindos não sei de onde, que me angustiam, tiram noites de sono. Por isso estou chorando. Queria que tudo voltasse a fazer sentido!”.
O cão continuou olhando para a arara-azul por longos minutos, para então responder: “Você não é mais apenas uma admirável arara. Um dia você irá descobrir que animal você se tornou por dentro. E, assim, ciente de quem é, irá mostrar a todo o vale esse novo ser. Seu novo eu conseguirá viver a paz que tanto procura!”.
Assim que o cão se foi, sozinha, no que restava do ninho que um dia chamou de lar, a arara-azul começou a arrancar suas próprias penas, uma a uma e quando não havia mais penas a arrancar, ela arrancou suas garras.
...

Tantas recordações... Subitamente algo faz com que as lembranças se esvaiam. A arara falou baixinho para si mesma com um leve sorriso de satisfação: “Ele chegou!”. Os passos do cão podiam ser ouvidos minutos antes de sua chegada, vez que a arara, durante sua criação, desenvolvera alguns sentidos de seu mentor, dentre eles, a audição canina. Logo seu corpo se projetou na subida da colina, seus olhos sempre à frente, sua mente ainda experimentando as sensações da reunião com o beija-flor, durante a última grande tempestade.

A arara abriu suas asas. Desceu planando tranquilamente, até pousar em frente ao cão que, admirado com aquela postura imponente que a arara-azul adquiriu, limitou-se a sentar-se e dizer olá a sua amiga.
Com olhos novamente brilhantes, a arara disse: “Olá, irmão-cão!”. O cão respondeu: “Olá, minha amiga! Transformar-te novamente em um novo e lindo ser. Semelhante e tão diferente de quem era quando a vi pela última vez. Permita-me conhecê-la. Mostre-me quem você é agora! Diga-me irmã-arara: por que está sorrindo?”.

A arara-azul então respondeu: “Não sei... Talvez eu esteja sorrindo por perceber que minha vida só está seguindo o caminho que escolhi para que ela seguisse, ao tomar minhas decisões. Se agora estou voando por ares que temo e desconheço é porque escolhi sair do meu ninho-seguro, onde eu confiava em mim e nas outras aves, além de ter um Pássaro-mais-velho maravilhoso. Se enfrento problemas nos meus vôos com a arara-vermelha, é porque escolhi continuar voando assim, mesmo quando percebi que não havia mais razões para tal. É porque sou covarde e morro de medo de voar sozinha. Se meu bando mudou comigo, deve ser porque eu mudei primeiro. Porque me distanciei, me fechei... Se meus medos mudaram, talvez isso não seja tão ruim. Deve significar que amadureci e que aqueles medos anteriores não me afligem mais. Por isto estou sorrindo! Talvez eu apenas tenha aprendido a ver o mundo por um ângulo mais positivo. Ou talvez eu esteja ficando louca!”.

O cão a olhou, sorriu, e falou calmamente: “Estou orgulhoso de você, irmã. Você se tornou uma majestosa harpia-azul”.

De repente o silêncio domina a floresta. Todos os animais estão a postos, ansiosos, contentes: A Mãe Natureza chegou para, mais uma vez, lhes informar as missões a que cada um estaria destinado – ela notava nos olhos dos animais qual era seu destino. Ela não distribuía realmente as missões, ela apenas informava e orientava.

A Mãe Natureza se aproximou da harpia-azul. Olhou em seus olhos. Olhou e olhou e então sorriu. Com um sorriso verdadeiramente faceiro disse: “Ora, ora... mas é claro...”. Ela olhou para trás e, com um assovio, três lindos cãezinhos se apresentaram. Olharam com curiosidade para a harpia-azul, pois nunca tinham visto um cão assim.

A harpia-azul, mesmo tendo sempre muito respeito pela solenidade do evento, olhou para o cão de modo a se fazer entender que aquilo demonstrava o sentido mais que perfeito das coisas. Ela sente novamente que há lugar para ela no mundo. O cão sorriu e aquela que um dia foi um delicado passarinho sonhador, que se tornara uma linda arara-azul, era agora uma harpia com a bela missão de ser, para aqueles cachorrinhos, o Cão-mais-velho.


B.C. *coautoria de Ana Carolina Santos

* CAPÍTULO I DE PÁSSAROS QUE LATEM: Uma estranha união

3 comentários:

  1. A arara-azul tem muita sorte de ter um pássaro-mais-velho tão brother!

    Lindo o texto. Linda a profundidade. Lindo como ele foi criado!

    Sempre uma honra!

    Você escreve DEMAIS!

    beijo!

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  2. Que isso Em Brunão.. Legal D+.

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