domingo, 27 de novembro de 2011

A VARA AMADA - I

“Dentro das Regras, nossas próprias regras.”

(Maoli)


Tenho falado pouco do trabalho em cartório, apesar de ser o título deste espaço de publicação de textos. Falei do cartório em “Pássaros que latem” (o cão foi baseado neste que vos fala, os pássaros que aprenderam a latir foram baseados na primeira geração de minha equipe e a mãe-natureza é Deus, com seus planos ordenados em situações, apenas aparentemente, caóticas). Falei do cartório também em “Tatuagens e outras marcas que ficam” (a última tatuagem foi um problema de trabalho superado de modo tão natural que chega a ser estranho), e no fim de “Lembranças do futuro do pretérito” (foi um texto sobre um futuro próximo ao calcular o tal problema no cartório que gerou a última tatuagem). Mas além de ter falado pouco, falei por meio de analogias que só são passíveis de entendimento por mim e por quem fez parte das histórias em meu ambiente de trabalho. Agora pretendo dedicar um espaço próprio para falar com certa freqüência sobre a escrivania judicial (o cartório de uma das Varas de Assistência de Goiânia) à qual tenho me dedicado de corpo e alma, literalmente. Mas porque essa dedicação?

Descobri que escrever me faz bem quando eu ainda estudava em uma escolinha chamada Gente Importante. Deveria ser obrigatório escolas infantis terem nomes idiotas. Para uma criança, isso é muito legal! “Gente Importante”. Com a chegada da fase adulta, os textos de minha autoria foram diminuindo na mesma proporção que o brilho em meus olhos. Parecia uma perda de tempo, já que eu poderia estar estudando, ou fazendo algo que “gente importante” faz. Publicar livros depende da elaboração de um trabalho excelente e contatos. Nunca considerei algum texto meu excelente, e nunca tive contatos, então, criei este espaço para publicação na internet, o qual ficou parado por um ano. Aos poucos, as experiências passadas em uma certa escrivania judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, foram renovando minha necessidade de alinhar pensamentos e sentir paz interior. Assim renasceu a necessidade de expressar o que penso e sinto através de palavras escritas. O que quero dizer é que o trabalho no cartório me inspira e foram as experiências vividas nesse ambiente de sentimentos e sensações diversas que me devolveram a vontade de escrever. O título correto deste blog seria: “é porque trabalho em cartório que sou escritor”.

Todos já ouviram a frase açucarada: “Trabalhe com o que você gosta de fazer e nunca terá que trabalhar”. Essa é uma das maiores baboseiras passadas de boca-a-boca através das gerações. Você pode fazer o que ama, porém se tiver responsabilidades, metas, prazos e qualquer forma de pressão, é trabalho. Por isso jogar bola profissionalmente é trabalho, o qual dizem, cansativo e desgastante (com remuneração absurda, mas é). Talvez o pensamento correto seja mais algo como “trabalhe com o que você gosta de fazer e irá se sentir satisfeito mesmo com todo o cansaço”. Trabalhar em uma escrivania de assistência judiciária é algo muito cansativo, porém, extremamente prazeroso, vez que amo o que eu faço.

Não, não... Meu amor é pelo Direito. Pelo cartório, tenho paixão.

Como todo objeto de paixão, o cartório me deixa angustiado e empolgado; ameniza o tédio que sinto constantemente; me força a amadurecer como pessoa ; me faz chorar; me faz sorrir; me faz perder o sono. O trabalho no fórum me faz dormir o sono dos anjos, como vovó já dizia.

Pensando bem, talvez minha relação com o cartório não seja apenas paixão. Creio que seja amor. Só o amor justifica tudo o que passamos juntos.

E o que mais gosto do trabalho no cartório: toda semana tem uma história para contar. E eu vou contar!

Bruno da 6ª

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

SUA MÃE VAI MORRER

ENSAIO SOBRE O PESSIMISMO-POSITIVO


Muito se fala sobre a busca da felicidade e o pensamento positivo como o segredo do universo. O que não contam é que essa busca resulta sempre em frustração, vez que expectativas exageradas levam a decepções e mágoas. Entendemos ser a chamada felicidade nada mais do que os raros momentos que Deus nos permite entre uma desgraça e outra em nossas vidas. A busca que todos têm como necessidade vital não deve ser por uma felicidade abstrata. Deve ser, sim, a busca por uma sensação de paz através de uma vida harmoniosa e tranqüila, eliminando a tristeza após a difícil tarefa de enxergar o mundo sem o colorido da fantasia. Sem esse trabalho de nova visão das coisas, torna-se comum confundir felicidade com empolgação. A falsa felicidade nessas situações é passageira e dependente de situações de conquista. Verdadeiramente feliz é aquele que sabe dos males e mazelas do mundo e ainda consegue se levantar para lutar. Defendemos aqui a tese do saudável pessimismo, chamado doravante de pessimismo-positivo.

Viver o pessimismo-positivo nada mais é que abrir mão da ilusão de vida segura e distante do caos que nos é imposta pela sociedade (devido a necessidade do ser humano de tornar a arte de lidar com as situações do cotidiano um pouco mais simples), aceitando, dessa forma, o lado menos prepotente das coisas. Significa ver o mundo de um modo mais realista, mais cru e, por vezes, mais cruel. O que não deve ser confundido com tristeza. Trata-se apenas de limpar o terreno (mente e alma) para que sentimentos puros, e até mesmo a tal felicidade, possam surgir naturalmente.

Abraça a idéia do pessimismo-positivo quem compreende que ter a auto-estima destruída em alguma fase da vida, uma pitada de depressão relativamente superada e dúvidas sobre seu valor e seu lugar no mundo são fatores essenciais para a construção da personalidade. Entender isso é mais difícil para os mais novos, pois as atuais regras de convivência e necessidade de projeção de suas vidas em redes sociais, aparentemente resultaram em uma verdadeira imbecialização de toda uma geração. Pessoas nascidas nos anos noventa (principalmente e, por isso, aqui usadas como exemplo) formam uma geração perdida, salvo, é claro, raríssimas exceções. Exceções essas que experimentaram ter sua auto-estima destruída em alguma fase da vida, uma pitada de depressão relativamente superada e dúvidas sobre seu valor e lugar no mundo, o que nos parece ser a verdadeira fórmula do despertar.

É de conhecimento comum que pessoas que sofreram alguma experiência dolorosa e superaram a dor, conseguindo seguir em frente, enxergam o mundo com olhar mais maduro (claro que algumas, mesmo sofrendo, continuam presas à ilusão). Não é necessário sofrer se você conseguir ter empatia o suficiente para sentir a dor de outra pessoa e assim se desenvolver a ponto de despertar para o mundo cru. Após o despertar, começa a busca pela paz, e consequentemente, o encontro da felicidade.

Para esclarecer melhor a idéia de empatia de dor, analisemos sua vida de trás para frente, começando pelo fim e concluindo no tempo presente. Que tal essa sugestão de seqüência decrescente provável de fases de sua vida? Você vai morrer! Sim, você vai... Sinto muito! Agora como será sua morte? Será que vai doer? A dor lacerante no peito. Talvez seja como um desmaio: Sentirá falta de forças... Apenas vontade de dormir em horário que não o de costume. A cabeça batendo na pia do banheiro. Algo menos agradável de ser lembrado no paraíso: a cabeça no vaso sanitário enquanto se limpava. Um mal súbito pós-defecação parece até um gracejo divino, mas vai que acontece. O objetivo do ensaio é auxiliar a traçar planos e ajudar a moldar a postura com a qual você irá seguir seu caminho. Deixo claro: ESTE TEXTO NÃO TEM O OBJETIVO DE INDUZIR AO SUICÍDIO. Deixe para morrer de causas naturais. Vai que com o tempo você percebe que não é completamente inútil. Claro que o mais provável é que você seja, afinal, sua grande preocupação é conseguir um emprego legal para comprar coisas (muitas) das quais não necessita, pagar contas apenas para sobreviver com um mínimo de dignidade e comer. Comer, dormir, talvez se exibir e defecar são as razões da sua vida.

Como fica combinado que ninguém aqui vai planejar a própria morte, vamos seguir para outra constatação: você verá sua mãe morta! Meus pêsames. Talvez você morra primeiro, ou morram juntos em um acidente de carro, mas a primeira alternativa é a mais provável. Quando ela falecer, lembranças de anos passados irão se aflorar e fazer com que perceba que brigar por ela não ter feito a comida que pediu, ou por algum problema familiar patético, ou porque não deixou você dormir fora só porque ela sabia que você ia passar a noite transando com algum idiota, acaba perdendo um pouco o sentido, não acha? É muito bonito e deprimente (vez que algo estúpido), ver familiares se aproximar na hora da dor, pedir perdão e se lamentar por não terem aproveitado mais. A dor virá. Dor é a regra. Não serei piegas e falarei algo como “abrace papai e mamãe e diga eu amo vocês enquanto pode”. Só não queira se sentir leve falando coisas bonitas e juras de amor além da vida para sua mãe quando ela já estiver no leito de um hospital, sem consciência, com uma sonda de alimentos atravessando sua barriga. Torne-se um bom filho agora, ou seja mau até o fim. Você vai sofrer por ver sua mãe sentir dor e não poderá fazer mais nada do que já está fazendo para ajudá-la. Antes disso, você vai ter alguém. Você vai perder alguém... Se aceitar o desafio, você mesmo pode preencher as reticências.

Essa idéia aparentemente estranha tem se mostrado um verdadeiro mapa para quem está se sentindo perdido. A bússola se desenvolverá dentro de você com o tempo, não se preocupe.

Maoli


(SUA MÃE VAI MORRER - Capítulo II - O sorriso da alma)

Previsão de publicação: 01.12.2011

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A VERDADEIRA MAGIA



Nesse dia das bruxas, repasso aqui uma receita rápida para a preparação de qualquer feitiço básico.

Como eu disse em mandruvás alados, na busca em algo para crer, estudei um pouco acerca de espiritismo, budismo, hinduismo, protestantismo, Santo Daime e... Wicca, o estudo do que é chamado vulgarmente de bruxaria, e posso contar algo que descobri nesse percurso: Não é por você, nem para você, que o mundo gira. Quando você morrer, algumas pessoas sentirão sua falta, mas logo se adaptarão e elas, assim como o resto do mundo, irão continuar suas vidas, mesmo sem os seus dramas particulares e suas convicções e ideologias pessoais "tão importantes". Ter plena consciência disso é a primeira metade da base para a preparação mental necessária para que se consiga conjurar qualquer feitiço e manipular uma pequena magia. A outra metade restante é querer de verdade, sem qualquer razão para peso na consciência. Desejar com pureza, sabendo que ninguém será prejudicado no caminho. Nesse momento relembro aqui a célebre frase de conhecimento popular: “Quando você deseja realmente alguma coisa, todo o universo conspira a seu favor”. Poucas pessoas sabem, mas essa crença, que pode ser compreendida como qualquer tipo de fé, é a base para a magia pura.

Vamos agora analisar o essencial de qualquer ensinamento de magia popular: preparação do ambiente, vestuário, material para a elaboração do feitiço e o principal, as falas a serem conjuradas.

Toda receita que encontrar que venha a ensinar essas coisas sem sentido, leia por curiosidade (qualquer leitura pode ser interessante) e depois ignore, pois não passa de baboseira.

A chamada Magia é simplesmente se integrar à natureza em sua essência, respeitando-a ao aceitar que não somos nada perante essa força, entender seu ritmo e tentar se adequar para obter o equilíbrio desejado. Tudo se trata apenas disso: a busca pelo equilíbrio.

A frase tradicional de halloween dita pelas crianças em frente às casas, “doces ou travessuras”, fantasiadas de demônios, representa na tradição Celta o que pode ser compreendido como forças da natureza dizendo: “me agrade que eu te agrado, ou me desagrade e sua vida se tornará uma bagunça”.

A verdadeira receita da magia pura é: Agrade a vida!

Se você quer saúde, deseje que alguém doente se cure.

Se quer amor, deseje que alguém triste fique feliz.

Se quer dinheiro, deseje que alguém consiga comprar algo de que necessite.

Se quer respeito, deseje que alguém seja respeitado.

E, quando possível, não apenas mentalize, mas faça algo!

Pode parecer piegas, mas realmente funciona. Unindo a primeira metade da base para a preparação mental, destruindo sua idéia superficial de ego e limpando a mente de ideologias e angústias banais, com a segunda metade, o desejo concentrado, você observará estranhas coincidências acontecendo em prol de seu objetivo. Desapego e foco. É o mesmo princípio bíblico que diz: Dá e receberás.

Desejar algo a outra pessoa e se mover em busca da concretização do desejo, faz com que desejem e façam de volta.

Essa é a verdadeira magia, ou fé, ou como quer que queira chamar o que pode de fato mudar a vida de alguém e consequentemente a sua.


B. C.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

VIDAS EM GOIÂNIA LESTE - Histórias dentro da História (01)

PRELÚDIO (do que um dia será um livro – publicação quinzenal)

Era manhã de domingo quando ao voltar para casa me deparei com Dona Otília, antiga moradora do fim da rua, parada, olhando para uma casa recém construída em um dos últimos lotes baldios do bairro, aparentando ver muito mais do que uma residência. Ao passar por ela, a velha senhora me encarou por milênios de segundos até que eu, naturalmente, perguntei: “Olá, Dona Otília! Tudo bem?”.

E é assim que essa história começa.

(.)


1994 - A MALHA ASFÁLTICA

Ainda olhando a casa em nossa frente, Dona Otília começou a explanar suas divagações: “Bruno, você se lembra quando o Beto vinha nesse lote pegar lenha pra fogueira da quadrilha do bairro? Você devia ter uns 10, 12 anos e vivia naquela sua bicicletinha, correndo pra cima e pra baixo deslumbrado com o asfalto. Todo ano, ele e os rapazes fechavam a rua com palha e madeira. Eles nunca mais quiseram festejar depois que o Hélio morreu (...)” [continua em 02/11]

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A SUA RAZÃO DE SER


Há muito e muito tempo atrás, em um estojo azul, localizado no canto superior direito de uma mesa de estudos muito distante, uma longa e interessante discussão cortou o esperado silêncio noturno. O motivo: a borracha resolveu que não iria mais apagar.
(...)
A borracha bradou desesperada:
_ Estou decidida! Eu irei buscar uma nova razão para minha existência. Venha comigo, lápis! Vamos escolher nosso caminho. Sua razão de ser é escrever e sempre que você a exerce eu sou gasta e logo chegarei ao fim e irei morrer. Eu não quero morrer!
O lápis, com sua postura sempre tranqüila e voz serena, prosseguiu seus esforços para acalmar sua amiga:
_ Você tem um papel muito importante no mundo, borracha! É por você existir que os humanos podem errar. Se você não mais apagar, erros jamais serão corrigidos. Não haverá volta! Mudará minha característica principal, a da liberdade de pensamentos, pois possibilito escrever tudo o que vier à mente para que depois você apague. Sem você, eu serei praticamente uma caneta.
Do lado de fora do estojo, ouvindo aquela interessante conversa, o papel se meteu na contenda:
_Não se compare à caneta, lápis! Ela nunca ousou questionar a si mesma. Aprendeu o básico do que tinha para aprender e viverá assim, satisfeita com sua soberba trivial. Talvez ela venha a questionar sua aleteia quando sua tinta estiver secando ou se esgotando. Só então ela irá pensar em tudo o que escreveu. Só então irá pensar nas marcas eternas que deixou em mim.
O papel continuou a expor seu raciocínio:
_ Pequena borracha, ouça bem. Um objeto depende da razão de ser do outro. Quando a caneta escreve em mim, eu me torno um documento para ser consultado, lido e relido, mesmo que com o passar dos anos eu me torne amarelado. Quando o lápis escreve em mim, os pensamentos livres, nem sempre, mas em sua maioria, são esboços, rabiscos, textos e desenhos não satisfeitos, não definidos, não perfeitos. Você é parte de tudo isso borracha. Sua razão de ser está ligada ao lápis de uma forma muito bonita. Vocês, borracha e lápis, formam uma dupla inseparável há gerações. O lápis sempre estará próximo de você. Sua essência, na verdade, influencia até mesmo o meu propósito. Em certo momento, após tanto apagarem o que fora transcrito em mim, eu também fico gasto, deixo de ser bonito e sem marcas. E o que acontece comigo? Consideram que perdi minha razão de ser, me dobram por todos os lados, me dão o formato de uma bola e me jogam em cestas de lixo, sendo minha derradeira honrosa e humilhante função providenciar um breve momento de diversão.
A borracha ouvia a tudo atentamente.
O papel conclui:
_ Sim, você está certa! Quanto mais o lápis escreve, mais você se consome, porém, borracha, quanto mais você se gasta, mais ele repete a escrita e gasta a si mesmo. Como conseqüência, de tempos em tempos o apontador exerce sua razão de ser e aponta o lápis, tornando-o cada vez menor...
O lápis, estranhando toda aquela simpatia, resolveu agradecer ao papel pelos sábios conselhos e retomar a conversa de modo mais particular:
_ Obrigado, papel! O senhor sempre nos auxilia com suas sábias palavras, com sua experiência adquirida pelas constantes escritas que tem recebido ao longo de sua existência. Obrigado!
O papel entendendo a indireta, limitou-se a retornar para sua pasta.
Olhando com carinho para a borracha, o lápis ponderou:
_ Você está apenas nervosa. Pense no que lhe falei e saberá o que fazer. Confio em você, minha melhor amiga. Continue seu caminho, fazendo o que faz de melhor!
E com um sorriso carinhoso, do fundo de seu coração, declarou:
_ Eu preciso de você!
Sem mais argumentos, com os olhos cheios de lágrimas, a borracha virou para o lápis e disse:
_ Sim, lápis! Agora eu entendo. Não é como indivíduos que nossa razão de ser tem sentido. Nós não podemos seguir o caminho que ansiamos, em respeito à razão de ser do objeto próximo, pois estamos interligados. Temos nossas características, habilidades e virtudes pessoais, mas é como parte do estojo que uma aleteia se encaixa na outra e, juntos, somos uma única e completa razão de ser. Muito obrigada por me fazer entender. Obrigada, querido lápis!
Assim, cada material, satisfeito com sua vida, se alojou em seu devido lugar e a paz voltou a reinar naquele estojo.
Naquela madrugada, o lápis transcreveu para o papel um sonho que o humano, dono do estojo, acabara de ter e, exausto, se encostou, distraído e só, no canto esquerdo da mesa, onde, longe dos outros materiais, ele descansou. Subitamente, sua ponta foi encoberta por um apontador que começou a girar, girar e girar com toda a sua energia. O lápis se debateu no início, mas logo perdeu suas forças e deitou-se inerte. A borracha olhou fixamente para o lápis. Um olhar ao mesmo tempo triste e decidido e, mais uma vez, respirando fundo, pegou firme o apontador e tornou a girar. E continuou girando, até que o que antes era um lápis com desígnio próprio, com a sua razão de ser, se transformou em uma pequena porção de lascas de madeira.
Após dar uma última olhada na imensidão daquele quarto, a pequenina borracha, sorrateiramente, se jogou na gaveta da mesa onde tudo ocorreu, e lá, perdida no fundo escuro de seu novo lar, em meio a tantos papéis e outros objetos há tempos esquecidos, ela viveu feliz para sempre.
FIM
BC
P.S.: A moral da história fica a critério do leitor.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Grandioso Amor, Belicosa Insanidade



Fecho seus olhos com ternura
Cubro seu corpo com respeito e devoção
Despeço-me com o amor mais puro
...
São três horas da manhã e eu acordo preocupado com você
Demoro para me lembrar que sua dor já passou
São seis horas da manhã e chamo seu nome
Seis horas e um minuto e me lembro que você não vem
...
São duas horas da manhã e eu acordo ouvindo você me chamar
Eu respondo, mesmo você não estando mais aqui:
“Estou aqui! Não tenha medo, não está sozinha!”
Não a vejo
“Estou aqui!”
...
São cinco horas da manhã e ouço seu gemido
Olho através da vidraça e procuro seus olhos
Saio a sua procura
Preciso ver que você não está lá
Apenas um ser alado da noite corta o ar que respiro...
...
Sinto a grama em que você deitava
Sinto o chão no qual você pisava
Sinto seu perfume em seu colar
O passado se torna presente
O frio da madrugada se converte em aconchego

Seu hálito quente
Em minha face

Seu olhar prepotente
Característico de quem se sabe capaz

Seu olhar bravio
Desafia a tudo

Seu olhar lânguido
Segue meus passos

Seu olhar amedrontado
Frente ao desconhecido certo
Solicita minha presença

Seu olhar vazio
Busca o último afago

Seu gosto
Seu choro
Suas manias
A falta que você me faz
...
Grandioso
Amor
Belicosa
Insanidade

Compreendo ser o desapego a morte da insônia
A beleza de sua alma não me abandonou
Aceitação
Sono

A paz que você me traz...

BC

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MANDRUVÁS ALADOS

“Venho do século passado e trago comigo todas as idades.” (Cora Coralina)

Aproveito-me da onda do politicamente correto para ter a liberdade de fazer uma analogia gay: Uma lagarta morre para que uma borboleta possa nascer? Ou será que uma borboleta só é tida como bonita porque, inseto mais maduro e experiente que é, chama a atenção de quem a vê para o colorido de seu corpo, fazendo com que ninguém olhe com zelo para a parte que não corresponde as asas, escondendo o fato de ser apenas uma lagarta nojenta que sabe voar? Bicho esperto. Aos 29 anos de idade completados, iniciando meu trigésimo ano de vida, surge a análise comum (vez que sou um coró comum), do que fiz da minha vida, de tudo que passei, dos planos não realizados cada vez mais distantes, do muito que já conquistei e apenas não percebi porque foi de forma tão natural que nem vi. A sensação de ser uma pessoa totalmente diferente de quem eu era há pouco tempo. Aquele pensamento idiota que passa na cabeça de todo mundo de vez em quando: “Se eu tivesse a mentalidade que tenho hoje naquela época... tudo teria sido diferente...”. Tudo teria sido diferente, inclusive eu hoje. Se eu me tornei quem sou, foi porque fiz do jeito que tinha que fazer. Faz sentido?

E o que eu fiz nesses 29 anos?

Nada mais chato que esses bebês-adultos. Crianças que falam como adultos sempre existiram e as que conheci e vi crescer se tornaram jovens adultos-idosos. Eu segui a linha contrária. Fui uma criança que sentia prazer em ser criança.

Andei de bicicleta, skate, patins. Aos 10 anos de idade, ia a boteco tomar baré (de biclicleta, skate ou patins) tirando onda de freqüentar ambientes toscos e “ser adulto” (tomar refrigerante que tinha o mesmo casco que cerveja era muito legal).

(ilustração para as crianças que não têm ideia do que estou falando)


Fui à banca de revistas comprar gibis, voltei lendo muito envolvido com a história e esqueci minha bicicleta lá. Fiz catequese. Pisei em macumba. Joguei bombinha no quintal da casa do padre Arraes (que Deus me perdoe). Pulei muro do colégio. Fui mordido por um cachorro enorme. Subi na torre do sino da Paróquia Imaculado Coração de Maria, quando estudava no Colégio Claretiano. Tudo culpa da tal macumba, já dizia a benzedeira que insistia para minha mãe que eu precisava de conserto.

Chorei quando cortaram os eucaliptos da curva do eucalipto (um dia contarei essa história).

Ficava sentado na calçada, ou na pracinha, conversando com os meninos da vizinhança todas as noites.

Aos 12 anos de idade, empolguei com Guns. Descobri o rock’n roll. Usei jaqueta preta, corrente com crucifixo enorme, anéis de caveira e deixei o cabelo ficar enrolado. Na minha cabeça eu era mau. Revendo fotos, eu era apenas um magrelinho nerd fazendo careta. Não importa a roupa. O estilo magrelinho-nerd sempre foi a parte determinante. Pegava emprestado livros de romance policial na biblioteca da praça cívica.

Chorei quando perdi cães que eu amava. Sempre nos apegamos aos animais, mas quando crescem com a gente é mais difícil separar as coisas.

Já fiz alguém sorrir.

Fui um adolescente que curtia budismo, até descobrir sobre bruxaria (e, claro, me empolgar). Apenas mais um menino patético empolgado com a onda new age da virada do milênio. Adolescentes têm direito de serem patéticos, não é? Estudei um pouco acerca de espiritismo, budismo, hinduismo, protestantismo, Santo Daime, wicca, seicho-no-ie, ateísmo, até perceber que tudo fala da mesma coisa, então, nada importa.

Já fiz alguém chorar.

Já vi disco voador.

Fiz pipoca e comecei a cantarolar a música do comercial de refrigerante. Fui um adolescente criticado por gostar de coisas de criança. Fui comprar refrigerante. Ainda nessa época entendi o poder da boa publicidade. Resolvi cursar Publicidade.

Já quis morrer.

Descobri que dinheiro vem antes de satisfação pessoal.

Resolvi que faria curso de Direito.

Chorei quando perdi alguém que eu amava. Olhando a lua cheguei à conclusão: “Morrer para que, se a lua é tão bonita?”.

Encontrei a mulher cujas características se encaixam na descrição do que a vidente viu. Ainda não fiz dinheiro. Ainda me entusiasmo com propagandas. Tornei-me um adulto que se empolga como criança.

É... Pensando assim, borboletas não passam de mandruvás com asas, voando por aí, sendo admirados. Corós lindos.

Ah, pisar na macumba foi legal!


Bruno César

quarta-feira, 27 de julho de 2011

PÁSSAROS QUE LATEM - Capítulo VI

O MUNDO LÁ EMBAIXO, A MUDA E O CICLO DA VIDA

Mesmo com o silêncio conquistado por estar confortavelmente a tantos quilômetros de altura, ela não se permitia enganar. Todo aquele movimento lá embaixo, o alvoroço que ela via com seu olhar de águia, só indicava uma coisa: Todos os animais do vale estavam ansiosos pelo regresso da Mãe Natureza. Porém, ele ainda não havia chegado. “Onde está ele? Não o vejo em local algum... Onde está o cão?”.

A arara-azul olha o horizonte, pensando no que virá, e logo sua mente se projeta para o passado, lembrando do que viveu até chegar àquele momento. Como ocorre em toda morte, antes de um novo renascer, sua vida se repassa diante de seus olhos.
...

“Um dia eu vou voar até lá em cima! Vou voar e voar!”. Aquela pequena voz inocente, que um dia fora sua, ecoou em sua cabeça. “Minha Mãe Natureza, quanto tempo faz?”. Sua mente, então, se esvai totalmente.
A arara se lembra que, ao sair do ninho, entre lágrimas e sorrisos, o cão disse suas últimas palavras como Pássaro-mais-velho: “Em breve você deixará de existir. O brilho nos seus olhos, o modo como bate suas asas e até mesmo seu grasnar irão mudar. Você se tornará outro ser, e assim que este novo ser cumprir sua razão de existir, novamente você irá mudar e se tornará um outro novo ser. Quero que me prometa uma coisa. Quero que me permita conhecer quem você irá se tornar”.
Ela havia encontrado o cão uma única vez. Foi pouco depois de sair do ninho, após conhecer a arara-vermelha, com a qual viria a formar um interessante casal, afinal, acompanhada de outra arara, ela não estaria sozinha. Nessa época, ela parecia absorver as habilidades de outras aves. Desenvolveu características como as da ave mais rápida, a mais resistente, a que mergulha (viu um mergulhão ir metros abaixo d’água atrás de peixe e resolveu que também conseguiria. Ela pegava os peixes e os comia, se secando primeiro, para que a arara-vermelha não desconfiasse), a que sobrevive ao frio, a que reage bem ao calor, a que voa mais alto, a melhor de caça, a que tem o canto mais bonito. Isso fez com que outras araras se afastassem dela. Ora, que tipo de arara era aquela, que tipo de pássaro era aquele? E, assim, entristecida, ela sentia que não se encaixava mais em nenhum bando.
Um dia, a arara-azul recebeu um recado de uma curicaca. O cão queria vê-la! Seu coração bateu forte. No caminho de volta ao ninho, agora como visitante, ela apenas pensava em não deixar transparecer o que estava sentindo e vivendo, pois queria mostrar ao cão que estava indo bem, voando longe do local em que fora criada. Ao pousar, a arara-azul se sentou e olhou para seu antigo Pássaro-mais-velho, procurando sorrir e demonstrar uma satisfação que na verdade não sentia. O cão, imponente perante a fragilizada ave, limitou-se a perguntar: “Por que está chorando?”. A arara não esperava tal pergunta, mas, no fundo, sabia que não conseguiria enganar o cão. Engasgou um pouco, respirou fundo, e então falou: “Não sei... talvez eu esteja chorando porque parece que o mundo que eu conhecia não existe mais. Porque o ninho seguro e tranqüilo no qual eu me apoiava, e no qual parecia que nada iria me atingir aparenta ter simplesmente desabado... Não reconheço mais nada em minha volta... Não reconheço meus sentimentos, as aves que me cercam, as emoções que me atingem, a indiferença que tomou conta de mim. E, o pior, não entendo como vim parar aqui, como tudo me trouxe nesse emaranhado de estranheza. Costumava ter sob meu controle --- ou, pelo menos, sob meu conhecimento --- tudo que me envolvia. Conhecia bem meu bando e os pássaros-irmãos. Sabia como voar bem, como agir com todos, como agradar a todos e, mesmo assim, manter aquela centelha crítica bem acesa dentro de mim. Agora não tenho ideia do que faço nesse novo bando e --- por mais que eu me esforce --- não consigo agradar ninguém, não sei como lidar com eles. Conhecia bem meus vôos com a arara-vermelha, tinha confiança de como e com quem estava voando, mas agora não sei mais como agir, não reconheço quem é a ave com quem estou. Conhecia meus medos. Sabia que boa parte das coisas que sempre me incomodaram não passava de medo, insegurança. Agora surgiram medos novos, provindos não sei de onde, que me angustiam, tiram noites de sono. Por isso estou chorando. Queria que tudo voltasse a fazer sentido!”.
O cão continuou olhando para a arara-azul por longos minutos, para então responder: “Você não é mais apenas uma admirável arara. Um dia você irá descobrir que animal você se tornou por dentro. E, assim, ciente de quem é, irá mostrar a todo o vale esse novo ser. Seu novo eu conseguirá viver a paz que tanto procura!”.
Assim que o cão se foi, sozinha, no que restava do ninho que um dia chamou de lar, a arara-azul começou a arrancar suas próprias penas, uma a uma e quando não havia mais penas a arrancar, ela arrancou suas garras.
...

Tantas recordações... Subitamente algo faz com que as lembranças se esvaiam. A arara falou baixinho para si mesma com um leve sorriso de satisfação: “Ele chegou!”. Os passos do cão podiam ser ouvidos minutos antes de sua chegada, vez que a arara, durante sua criação, desenvolvera alguns sentidos de seu mentor, dentre eles, a audição canina. Logo seu corpo se projetou na subida da colina, seus olhos sempre à frente, sua mente ainda experimentando as sensações da reunião com o beija-flor, durante a última grande tempestade.

A arara abriu suas asas. Desceu planando tranquilamente, até pousar em frente ao cão que, admirado com aquela postura imponente que a arara-azul adquiriu, limitou-se a sentar-se e dizer olá a sua amiga.
Com olhos novamente brilhantes, a arara disse: “Olá, irmão-cão!”. O cão respondeu: “Olá, minha amiga! Transformar-te novamente em um novo e lindo ser. Semelhante e tão diferente de quem era quando a vi pela última vez. Permita-me conhecê-la. Mostre-me quem você é agora! Diga-me irmã-arara: por que está sorrindo?”.

A arara-azul então respondeu: “Não sei... Talvez eu esteja sorrindo por perceber que minha vida só está seguindo o caminho que escolhi para que ela seguisse, ao tomar minhas decisões. Se agora estou voando por ares que temo e desconheço é porque escolhi sair do meu ninho-seguro, onde eu confiava em mim e nas outras aves, além de ter um Pássaro-mais-velho maravilhoso. Se enfrento problemas nos meus vôos com a arara-vermelha, é porque escolhi continuar voando assim, mesmo quando percebi que não havia mais razões para tal. É porque sou covarde e morro de medo de voar sozinha. Se meu bando mudou comigo, deve ser porque eu mudei primeiro. Porque me distanciei, me fechei... Se meus medos mudaram, talvez isso não seja tão ruim. Deve significar que amadureci e que aqueles medos anteriores não me afligem mais. Por isto estou sorrindo! Talvez eu apenas tenha aprendido a ver o mundo por um ângulo mais positivo. Ou talvez eu esteja ficando louca!”.

O cão a olhou, sorriu, e falou calmamente: “Estou orgulhoso de você, irmã. Você se tornou uma majestosa harpia-azul”.

De repente o silêncio domina a floresta. Todos os animais estão a postos, ansiosos, contentes: A Mãe Natureza chegou para, mais uma vez, lhes informar as missões a que cada um estaria destinado – ela notava nos olhos dos animais qual era seu destino. Ela não distribuía realmente as missões, ela apenas informava e orientava.

A Mãe Natureza se aproximou da harpia-azul. Olhou em seus olhos. Olhou e olhou e então sorriu. Com um sorriso verdadeiramente faceiro disse: “Ora, ora... mas é claro...”. Ela olhou para trás e, com um assovio, três lindos cãezinhos se apresentaram. Olharam com curiosidade para a harpia-azul, pois nunca tinham visto um cão assim.

A harpia-azul, mesmo tendo sempre muito respeito pela solenidade do evento, olhou para o cão de modo a se fazer entender que aquilo demonstrava o sentido mais que perfeito das coisas. Ela sente novamente que há lugar para ela no mundo. O cão sorriu e aquela que um dia foi um delicado passarinho sonhador, que se tornara uma linda arara-azul, era agora uma harpia com a bela missão de ser, para aqueles cachorrinhos, o Cão-mais-velho.


B.C. *coautoria de Ana Carolina Santos

* CAPÍTULO I DE PÁSSAROS QUE LATEM: Uma estranha união

domingo, 17 de abril de 2011

PÁPRICA


Ela abre os olhos e observa a meia luz que passa por entre as frestas da cortina, sem saber ao certo se está amanhecendo ou se é entardecer. Franze um pouco a testa quando começa a se lembrar da dura decisão que terá que tomar muito em breve. Mesmo assim, está satisfeita, pois experimentou a leveza da maior liberdade que alguém pode sentir: esquecer o próprio tempo. Abre as janelas e contempla as cores do céu límpido.

Olhar vazio.

Páprica
 
O céu estava alaranjado. Sentado em sua cadeira nos fundos de sua casa, como de costume, ele contemplou o jogo de cores celestes. Um pouco de azul, uma pitada de rosa, mas, em sua maioria, algo meio laranja. Concentrou-se tanto nisso que não se lembrava mais dos motivos que o levaram a divagar.
 
Respirou fundo. Sentiu a brisa. Fechou os olhos.
 
Páprica.
 
Ao mesmo tempo, ela abre a porta de sua casa depois de um dia de trabalho. Dois ônibus lotados durante o caminho feito em companhia de pessoas com todo tipo de aroma. De cheiro ocre a um exagero de baunilha. “Graças a Deus, cheguei!”. Poderia ser melhor, mas está em casa e é isso o que importa. 
 
Ela tranca a porta, já remoendo o dia que passou.
 
Páprica.
 
Longe dali, ainda sentindo o gosto de sua bebida, ele a olha penteando os cabelos, admirando o realce de sua pele clara face ao castanho escuro dos fios. Percebendo que está sendo observada, ela olha para trás com um sorriso faceiro e volta para cama. Ele a abraça e, sentindo o suave toque de seus seios nus contra sua barriga, beija-a pouco acima dos olhos e encosta carinhosamente o queixo sobre sua cabeça, olhando fixamente para o nada.
 
Observa, concentrado, a parede cor creme à sua frente, projetando de sua mente algumas cenas de sua vida.
 
Páprica.
 
Praticando caminhada (o único esporte em que era bom, mesmo alguns dizendo que ele andava de um jeito estranho), resolveu seguir por uma trilha diferente dessa vez, então... virou à esquerda por uma rua que nunca tinha ido. O ar frio entrava por suas narinas e lhe dava a sensação de lhe limpar por dentro. A cada expiração, uma sensação agradável. Mas como sempre acontece, em determinado momento, teve que voltar. Voltar pelo mesmo caminho de sempre. Voltar ao começo de tudo. Voltar sempre. 
 
Olhou aquele caminho levemente tortuoso. Sempre.
 
Páprica.
 
Permanecia olhando para o fogão há uns dez minutos como que se preparando para um desafio. Estava aprendendo a cozinhar. Tinha que aprender, oras. Separou todos os ingredientes, acendeu a chama, calculou exageradamente a quantidade de óleo a colocar na panela. Mexeu sempre, como aconselhado. Adicionou água até a altura determinada. Contou os minutos olhando para o relógio. O cheiro exalado indicava que estava no caminho certo. Aguardou pacientemente a hora de degustar. Aprendeu a ter paciência, que sempre lhe disseram ser fundamental. Estava pronto. Tudo estava dentro dos parâmetros: havia consistência, estrutura homogênea, superfície dourada, interior quente e úmido, como deveria ser. Mais um pouco e passava do ponto. Resolveu saborear. Insosso. Mas estava tão perto. Uma leve salpicada de algo que ainda não conhecia e a receita estará pronta. Falta apenas uma coisa.
 
Falta páprica.

BC

sábado, 12 de março de 2011

A DANÇA DA BIPOLARIDADE




















(Bruno César Machado de Oliveira)

Na sensual dança da bipolaridade, passei alguns dias deprimido.

Sensação de vazio.

Cheiro de café.

Sons ao longe.

Abri os olhos.

Sábado.

Vontade de mudar de pólo.

Manhã fria.

Cheiro de pipoca.

Deitei no chão do quintal.

Comecei a tirar fotos de nuvens.

(Quis saber se mais alguém vê os mesmos desenhos que eu vejo).

Nuvens mais escuras.

Chuva leve.

Banho de chuva.

Brisa agradável.

Cheiro de vida.

Raios de sol no rosto.

Nuvens mais claras.

Novos desenhos.

Uma das nuvens se sentiu à vontade comigo e resolveu revelar seu rosto.

Foi incrível.

Um pouco assustador.

Eu também estava sendo observado.

Espero que tal grandiosa face tenha gostado dos desenhos que viu em mim.

Vontade de me espreguiçar.

Sensação de plenitude.

Um sorriso.

Acordei.

Estou de volta.


(BC Maoli)

domingo, 16 de janeiro de 2011

AMOR AO PRIMEIRO SORRISO

Sonhei com uma garota tempos atrás. Há meses, já não sei quantos. Anos talvez. Ela tinha um olhar doce e uma postura firme. Aparentava tristeza. No sonho, caminhávamos juntos enquanto ela me contava sobre algo ruim que acontecera com ela e eu a confortava.

Durante o caminho, falei alguma coisa idiota que serviu ao mesmo tempo para devolver a ela o brilho no olhar e para eu receber um tapa nos ombros, desses que só ganhamos de quem gosta da gente, e foi então que percebi algo mágico. Eu a fiz sorrir. O sorriso mais puro, iluminado pelo brilho encantador de seus olhos deu a mim uma leveza na alma que não me lembro de antes ter sentido. Eu estava renovado. A turbulência de meus planos auto-sabotadores, a dor de carregar enorme rancor no coração e o peso de minha alma cansada simplesmente desapareceram com aquele sorriso.

Foi, então, que eu acordei.

A sensação era de uma lembrança boa de algo que realmente havia acontecido há pouco tempo. Demorei alguns segundos para entender que eu nunca havia visto aquela menina e ainda aceitar que talvez... não talvez, provavelmente, ela nem exista realmente. Fiquei triste quando entendi que era apenas um sonho, mas, ao mesmo tempo, algo curioso me chamou a atenção.

A depressão desapareceu.

Anos e anos de amargura e passos descrentes, degraus decrescentes. Parado no tempo enquanto olhava com olhos opacos o mundo girar com toda sua força. Despertando diariamente me lamentando por não ter morrido enquanto dormia. Tudo se foi com um sonho, sem deixar qualquer vestígio. Era ainda madrugada, abri a janela, olhei para cima e observei placidamente o infinito celeste. Morrer para que, se a lua é tão bonita? Minha alma se tornou leve e com vontade de vida como a de uma criança. Quem me conhece hoje, jamais imagina quem eu fui e me divirto com as tentativas frustradas que alguns tem em entender quem eu sou.

Eu sou um homem que vive a procura do sorriso que viu em um sonho.

Bruno César Machado de Oliveira

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

ANO NOVO, NOVO UNIVERSO

Listas de resoluções de ano novo não recebem a atenção que merecem. Não prometa a si mesmo que vai começar um regime, nem parar de fumar. “Nesse ano eu vou estudar”. Essas são promessas que, durante o ano inteiro, deixamos para começar na próxima segunda-feira. Sempre na próxima.

Desta vez, faça uma resolução diferente.

No interior de cada um de nós existe uma essência única, que é quem realmente somos. Em geral, as promessas de mudanças são tentativas de adaptar, aparar, suas características naturais, tornando-as mais apropriadas ao sistema, ao mesmo tempo que se distanciam de seu eu mais puro.

Descubra qual simples ritual o permite identificar e visualizar sua verdadeira natureza (seja sentar em um parque, olhar para a lua ou para os olhos de uma mosca) e então se concentre. Você saberá que a identificou quando perceber que não se importa mais com a gordura localizada, quando acender um cigarro ou parar de fumar naturalmente sem ao menos perceber, e quando estudar deixar de ser uma tortura e se tornará mais uma forma de prazer (rasgue a lista que fez até então). Neste momento, quando o mundo parar e o tempo descontinuar, pense em sua resolução de ano novo.

Eu, que sempre fui acusado de ser esquizofrênico e de viver em um mundo lúdico, sei bem qual a minha resolução. Se você pensou que seria algo como mudar meu jeito de ser, sair da bolha e viver como uma pessoa “normal”, por favor, releia a parte que falamos sobre o respeito que se deve ter pela essência do eu mais puro.

NESTE ANO, prometo criar um universo totalmente novo, mais coeso e estável, com características um pouco mais próximas das pertencentes ao considerado “mundo real” e permitirei que pessoas que não desejam estourar minha bolha tenham acesso há um novo mundo lúdico, maior e mais habitável. BWA-HA-HA-HA!!!

É um bom plano. E qual é o seu?


BC Maoli

domingo, 14 de novembro de 2010

PÁSSAROS QUE LATEM

CAPÍTULO I - UMA ESTRANHA UNIÃO

Em um vale cercado por árvores densas, havia um grupo de animais que se reuniam de tempos em tempos para receber uma missão passada pela própria Mãe Natureza. Somente após compreender seu objetivo, o animal poderia continuar sua jornada. Havia algo de diferente desta vez. Animais com características nunca antes vistas.
Neste grupo havia pássaros, raposas, gatos, serpentes, cães e até caracóis. Cada um estava ansioso com sua próxima missão. Pacientemente, a Mãe Natureza dedicou seu tempo a cada um, dando a eles a incumbência que mereciam ou necessitavam.
Chegou a vez dos cães. Dentre eles haviam os chamados cães de rua. Eram cães sem dono, que riam dos adestrados, e passavam grande parte de seu tempo treinando a si mesmos. Orgulhavam-se disso. Seu ritmo, suas façanhas.
A Mãe Natureza parou de frente a um velho cão de rua. Mais velho no olhar do que os anos realmente passaram. Olhou no fundo de seus olhos. Olhou e olhou, até que então disse com sua voz sempre doce e amável: “Sua missão é ser o Pássaro-mais-velho”. O silêncio reinou em todo o vale por longos instantes.

...
O Pássaro-mais-velho era aquele pássaro mais experiente que tinha a função de passar o conhecimento para as aves mais jovens. Recentemente, três pequenos jovens pássaros chegaram ao vale e se uniram ao grupo.
O cão, humilde e respeitosamente, questionou a ordem: “Mãe Natureza... desculpe-me, mas... essa determinação não deveria ser destinada a um pássaro? Há, entre nós, pássaros preparados para tal. Eu sou um canídeo, não sei o que fazer. Eu nunca voei. Como ensinar meus passarinhos a voar? Como alimentá-los?”.
A Mãe Natureza respondeu placidamente: “É o que você deve fazer. Essa é a sua missão!”. E continuou seu caminho, até o próximo animal.
O velho cão, meio sem jeito, olhou para as três pequeninas aves que o observavam com curiosidade juvenil, o achando um pouco estranho para um pássaro. Para começar, resolveu conhecer seus passarinhos, suas individualidades e, assim, tentar entender seu verdadeiro objetivo.

O primeiro que observou tinha o elegante porte de um faisão, mas era algo mais parecido com um encantador e misterioso rouxinol e, como tal, não parava de cantar. Seu canto ininterrupto irritava alguns outros animais, mas o cão gostava. Aquele canto suave o acalmava.
Outro, o passarinho mais delicado, lembrava muito um pequeno canário, mas o cão sabia que, um dia, aquele pequenino ser se revelaria uma imponente arara azul. Tinha uma penugem linda e um olhar alegre, com um brilho intenso. Ainda cantava baixinho e não sabia voar, mas o cão podia ouvi-lo, cantarolando repetidamente enquanto olhava as montanhas ao longe: “Um dia eu vou voar até lá em cima! Vou voar e voar!”. O brilho cegante de seu olhar incomodava alguns outros animais, mas o cão gostava. Aquela luz o permitia ver seu caminho de modo mais claro e simples.
O terceiro pássaro procurava ter uma presença de ave de rapina, mas era, na verdade, um belo beija-flor. Tinha um ar desconfiado e movimentos certeiros, como toda ave que não se deixa admirar, e um olhar de quem achava estranho ser aprendiz de um animal que não realmente uma ave. Seu jeito arisco perturbava alguns outros animais, mas o cão gostava. Aquela firmeza singela o confortava.
O cão analisou a condição em se encontrava, mas ainda não sabia o que fazer, até que... um dos passarinhos saltou em sua direção e começou a cantar para ele. Os outros o seguiram e tentaram também um canto ainda meio irregular, agitaram suas asas como podiam, ainda sem conseguir sair do chão, e, em alguns pequenos pulos, se aproximaram do cão e se sentiram satisfeitos, fortes, protegidos. Em meio a pulos e cantoria, alguns dos outros animais que estavam assistindo aquela estranha união podiam jurar que um dos passarinhos tentou, ainda que de modo desengonçado, esboçar um latido.
O velho cão sorriu e aceitou sua missão: “Por onde começar?”. Com a intenção não apenas de proteger e cuidar, mas de treinar seus passarinhos, construiu um ninho no alto do eucalipto centenário de forma tão irregular e grosseira que apenas um cão seria capaz de fazer.
Olhando aqueles pequenos pássaros, satisfeito com a situação, o cão entendeu que tudo aquilo fazia parte de um plano da Mãe Natureza. Tudo aquilo tinha sua razão de ser. E ao longe, porém próxima a todos, a Mãe Natureza observava atentamente.

B.C.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

DAS COISAS QUE EU ME LEMBRO E A CHUVA


Não me lembro de uma discussão supostamente importante que tive semana passada, mas me lembro de colocar barquinhos de papel na enxurrada quando eu tinha algo em torno de cinco anos de idade.

Lembro-me de chuvas passadas. De ter medo da chuva. De conversas olhando a chuva. De correr na chuva. De ficar de braços abertos, olhar para cima e sorrir sob a chuva.

Lembro-me do olhar dela e do jeito doce que brigava comigo.

Ler um romance policial (o Cão Amarelo), tomando capuccino, ouvindo a chuva, me fez lembrar de um tempo em que o grande debate que tinha com um certo amigo era se Sherlock Holmes era melhor que Hercule Poirot. A lembrança se foi com um sorriso, quando observei que esse duelo verbal perdura há quatorze anos. A discussão foi retomada com o lançamento do último filme do detetive britânico.

Observando a chuva, neste momento, com minha cadela deitada ao meu lado, me lembro de meu avô me ensinar que cachorro atrai raio. Lembrar de meu avô, por sua vez, me trouxe a lembrança dos doces de minha saudosa avó, que sempre acabavam mais rápido quando chovia.

Não me lembro de onde estacionei o carro, nem do que comi durante o almoço.

Alguns chamam de fuga. A verdade é que certas lembranças, mesmo que corriqueiras e simples, devem ir com a enxurrada.

Perdoe-me se não me lembrei do seu aniversário ou de uma briga que tivemos, mas saiba que me lembro sempre, com carinho, da sensação boa de estar ao seu lado durante uma conversa banal.

Coloquei um barquinho de papel na enxurrada hoje. Olhar aquele pequeno origami se aventurando por águas hostis me fez sentir uma paz perfeita. Um momento, uma sensação, da qual com certeza me lembrarei.

B.C. Maoli

sábado, 4 de setembro de 2010

TATUAGENS E OUTRAS MARCAS QUE FICAM

Uma criança que nunca ralou o joelho é uma criança que não tem liberdade para correr.
Para uma alma livre de formas pré-moldadas, marcas são inevitáveis. Como será essa marca, o livre arbítrio nos permite escolher. Antes de nos marcar, a vida nos pergunta: “Você quer uma cicatriz ou uma tatuagem?”.

Cicatrizes são estigmas deixados por feridas que muitas vezes voltam a se abrir. Quando finalmente se fecham, fica o eterno incômodo e a sensação de que aquela mancha, geralmente no peito, não precisava existir.

Uma tatuagem é um registro de um ritual de passagem. Muitas vezes doi quando está sendo desenhada, ainda mais dependendo do tamanho do desenho e o local a ser tatuado. Mas, no fim, olhamos para a bela tatuagem sempre com a satisfação de nos lembrarmos da passagem em nossas vidas que aquela figura representa.

Apesar de estranho, é comum as pessoas se apegarem a cicatrizes. Acreditam não terem chance de escolha, afinal, a maioria não queria mesmo nenhum tipo de vestígio de experiência... Queriam uma alma limpa, imaculada, por saberem que um homem que consegue uma marca não é o mesmo homem que era antes de ser marcado.
A verdade é que há escolha. Quando a vida lhe fizer a pergunta (não se preocupe, ela fará. E quando você menos esperar, perguntará de novo), responda sem pestanejar: “Eu quero uma tatuagem!”.

Nessa altura da jornada, minha alma está repleta de marcas. São desenhos lindos dos quais me orgulho. Lembro com carinho, mas não com saudade do tempo em que não havia vestígios de sinais.

Há pouco tempo consegui mais uma tatuagem.
Minha alma ficou mais bonita.
O mundo ficou mais bonito.

BC

domingo, 1 de agosto de 2010

Férias e as Virtudes Capitais – Parte I


O melhor caminho que encontrei para aproveitar as férias foi me entregar à futilidade extrema. Uma pessoa chata, sistemática, preocupada, paranóica... passar as férias procurando solucionar problemas insolúveis... “organizar as coisas”... estudar... não, obrigado.

Ao me levantar da rede para fazer uma saudável caminhada (a qual fiz de carro) que se concluiu em água de coco gelada, sombra, um momento sentado em um gramado, tive tempo vasto para pensar algo cujo teor minha saudosa avó chamaria de “potocas”: Curtir preguiça é pecado?

Hoje se sabe que a idéia de pecado foi imposta pela sociedade para limitar as ações do homem, sobretudo na Idade Média, alguns desses, pecados capitais, foram considerados merecedores de condenação.

Em apertada síntese:

Preguiça: Curtir a preguiça sem o menor vestígio de culpa é o maior presente que um homem adulto pode se oferecer.

Ira: Extravasar sentimentos ruins previne câncer. Nem é teoria minha, é algo cientificamente comprovado.

Gula: Essa é prima-primeira da preguiça. Frase feita clássica: Comer da sono e dormir da fome. Pra quem não acredita em verdade absoluta, fica a dica.

Luxúria: Consultando wikipédia: “Segundo a Doutrina Católica, é um dos sete pecados capitais e consiste no apego aos prazeres carnais, corrupção de costumes; sexualidade extrema, lascívia e sensualidade.”
Bom... err... bem... Tá, e aí?

Ainda tem vaidade, avareza, inveja, mas a água de coco acabou... dia muito quente... Hora de tomar cerveja.
Conclusão do raciocínio lógico fútil: Curtir preguiça é uma virtude, os outros pecados... também.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O FIM DO FUTURO DO PRETÉRITO

O que significa tudo isso? Por que nós nos aproximamos assim? Por que existe esse limite que nos impede de nos aproximarmos mais? Por que iremos nos afastar? Por que iremos passar algum tempo pensando no que poderia ter sido? Por que não fará sentido termos deixado de viver algo que parecia tão complicado, mas com o tempo veremos que é tão simples? Por que iremos sentir falta um do outro se antes de nos conhecermos a vida seguia normalmente? Por que iremos nos acostumar com a distância e logo depois nos acostumaremos com a total falta de contato? Por que iremos nos tornar agradáveis lembranças de um passado onde tudo era mais leve, mas não sabíamos? Por que olhar para fotos que hoje nem damos muita atenção trará uma sensação estranha? Por que lembrar de uma conversa boba que ainda não tivemos nos fará suspirar? Por que depois de nos distanciarmos um do outro iremos prometer a nós mesmos que aproveitaremos mais a vida e as oportunidades que o universo nos oferece? Por que ouviremos notícias um do outro e iremos fingir indiferença, para logo depois ficarmos imersos em pensamento? Para que?

Hoje eu acordei com vontade de mudar o futuro. Me dá sua mão! Vem comigo!

BC