terça-feira, 31 de julho de 2012

O rascunho

A todos aqueles que ousaram 
não matar a criança interior 


Abri a porta do carro para ir embora, com a cabeça repleta de pensamentos não lineares, onde cada problema tomava voz em um cenário mental semelhante ao que se imagina da bolsa de valores.
Valores...

Ansiedade
Frustração
Depressão
Irritação
Raiva
Agressividade

Respiro fundo e meu coração me diz:

Tudo bem!
Tudo bem!
Tudo bem!
Tudo bem!

Olho para o lado e lá estava ela. Acho que tinha sete, no máximo oito anos de idade. Pegou um pedaço de bambu e ficou arrastando no espaço entre a calçada e o muro, onde a grama ainda não havia crescido, fazendo um rastro interminável na terra.
Criança na calçada.
Brincar com o que achava por aí.
Riscar o chão com pedaço de tijolo.
terra.

Sintonia
Paz
Nostalgia
Empolgação

Me vem à mente o poeminha de Casimiro de Abreu que todo mundo aprende no colégio e que agora me parece mais triste do que no início dos anos 90 quando o li pela primeira vez:

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,

 Da minha infância querida 

Que os anos não trazem mais



Nessa hora meu coração grita:
 
TUDO BEM! TUDO BEM! TUDO BEM! TUDO BEM!


A criança andava e olhava para trás admirando o que estava fazendo, e sorriu de satisfação. Que sorriso lindo. Jogou o bambu fora, olhou para frente e continuou seu caminho, andando e sorrindo.

Aquele sorriso foi regado pelas palavras de felicitações que recebi de uma sábia escritora:

"(...) que Deus o ajude a realizar os seus sonhos, aqueles que nunca envelhecem e que estão sempre cada vez mais vivos dentro de você".

Vivos dentro de mim
Quebra de ego
Adoro cultivar plantas no quintal como uma velhinha. É o que ficou de minha avó em mim

Pra longe de tudo
Aprendi a arte da humildade e o refinamento da simplicidade. É o que ficou de meu avô em mim

Sou uma das poucas pessoas que tem o privilégio de ter mantido, ainda aos 30 anos de idade, amigos de infância. Sou padrinho do filho de quem brincava comigo de estilingue, dentre outras situações agradáveis de se pensar. Ser adulto significa ter a responsabilidade na medida apropriada para fazer o bem a outras pessoas. A criança interior deve permancer viva, já que faz parte dessa pintura


Meus sonhos, que nunca envelhecem e que estão cada dia mais vivos dentro de mim são a essência do texto, tudo o que foge a isso é rascunho. Rascunho que talvez um dia eu passe a limpo e torne-se essência também. Eu ainda estou escrevendo a história da minha vida.

E assim, mais uma vez, Deus renovou o meu espírito

 

Meu coração começou a cantarolar baixinho para eu dormir tranquilo:

Tudo
Bem


Tudo


Bem



Tudo


Bruno César


sexta-feira, 27 de julho de 2012

PÁSSAROS QUE LATEM - CAPÍTULO XV

Do alto no ninho, sentado em posição de vigilância, o cão refletia acerca das consequências dos últimos acontecimentos, enquanto os passarinhos trabalhavam na reconstrução de seu lar. Sem qualquer aviso, som ou cheiro, uma presença inadvertidamente surgiu ao seu lado.
_ Olá, Mãe Natureza! É sempre um prazer revê-la – disse o cão, mantendo-se imóvel.
_ Olá, irmão-cão! – a Mãe Natureza levantou a cabeça, encheu os pulmões, e continuou – Ah, como estou feliz por voltar aqui! Estava com saudade da energia de seu ninho.
_ A senhora é sempre bem-vinda, Mãe, mas imagino que não tenha vindo apenas para nos agraciar com sua visita.
Ela sorriu e, afagando a orelha do cão, respondeu:
_ Você está certo. É chegada a hora de, mais uma vez, distribuir as missões e eu vim pessoalmente para lhe dizer que é a vez de um pássaro assumir o ninho. Você, meu querido cão, não é mais o Pássaro-mais-velho.


...
PÁSSAROS QUE LATEM – Capítulo XV
O segredo da Mãe Natureza

O cão reuniu seus protegidos no centro do ninho e explicou sobre os novos ares que estavam por vir. A anunciação foi interrompida quando alguns se levantaram e bateram suas asas de modo agitado:
_ Não é justo! A grande tempestade, para a qual fomos preparados desde o início, finalmente passou e agora que já estamos reestruturando o ninho vem um pássaro? Tudo parece em equilíbrio, mas ainda há muito a se fazer – disse o sabiá.
_ Será muito estranho ser aprendiz de um animal que não seja um cão – disse a aracuã.
Sabendo que não há outro modo de reagir às determinações da mãe natureza a não ser aceitar, a irmã-cadela se deitou e colocou a cabeça entre as patas. A irmã-suçuarana, anteriormente o gatinho inseparável e já há algum tempo um ser grande demais para o ninho, vira de costas e diz não aceitar. Ela adora os passarinhos, mas sente a necessidade de encontrar outros de sua espécie. O ninho já havia se tornado pequeno demais para ela e agora sente que não haverá mais razão para continuar ali.
E em meio a piados, grasnados e resmungos, o cão continou:
_ Eu também não entendo, meus pequenos. Depois de todos esses ciclos, de tantas chuvas torrenciais, ser um Pássaro-mais-velho tornara-se algo quase natural, mas as decisões da Mãe Natureza estão além de nossa compreensão e cabe a nós, como seus filhos, respeitá-la sem questionar.
_ Não há um porque de tanta comoção. – disse o pequeno filhote de coruja, com sua penujem destoando de seu olhar de sapiência, a qual vem mais de sua natureza do que de experiências vividas - Você não é um pássaro e merece ser mais do que um pássaro. Mas também não é mais um canídeo. Você ainda parece um cão, mas se tornou um outro ser e um dia irá mostrar ao vale que animal você se tornou.
O cão sorri:
_ Obrigado, minha pequena corujinha. Tenho a impressão de já ter ouvido suas sábias palavras em algum lugar. Meus passarinhos, toda mudança, de certa forma é positiva. Há certas coisas que apenas um pássaro é capaz de fazer e será bom que treinem certas habilidades próprias de aves, como diferentes técnicas de voo. O novo Pássaro-mais-velho está vindo cumprir a missão que recebeu e pousará entre nós a qualquer momento. Eu quero que me prometam uma coisa: não se esqueçam do que aprenderam aqui. Respeitem aquele que será o Pássaro-mais-velho deste ninho e ele respeitará vocês. Quem sabe vocês não possam ensiná-lo alguns truques. Todos do vale sabem que vocês não são meras aves e isso não irá mudar. Olhem, ele está chegando:
_ Olá, irmão-cão. Há quantos ciclos!
_ Seja bem-vindo de volta, irmão-tiê. Meus passarinhos não poderiam estar sob melhores asas. Boa sorte em sua jornada. Cuide de meus pequeninos.

O cão olhou para trás uma última vez. As pequenas aves se juntaram ao seu redor e deram as asas, formando um círculo, que representa tudo o que foi e tudo o que um dia irá ser.



...
E assim, o velho cão deixou o ninho que tentou construir. Enquanto seguia sua jornada, cujo caminho sentia que precisava percorrer, se lembrou das palavras da Mãe Natureza, ditas após o anúncio do fim de sua incumbência, esclarecendo as motivações de sua decisão, e que agora ecoavam em sua mente:
“Olhe ao seu redor, irmão-cão. Tudo ficou claro para mim quando eu observei a nova geração de seus aprendizes. Eu dei a você uma missão: cuidar de jovens passarinhos. Veja o que aconteceu. Os Pássaros que Latem se espalharam por todo o vale. Não são mais um grupo. Eles se tornaram uma nova espécie. E cada pássaro ao sair de seu ninho e voar por conta própria se tornou capaz de criar um novo Pássaro que Late na árvore em que foi pousar. O falcão está sempre de guarda; a coruja o ajuda na instrução dos mais jovens; o bem-te-vi sempre alerta fiscalizando cada voo; o tucano quebra os alimentos mais duros para facilitar a alimentação dos pássaros que não desproveem de seu poderoso bico colorido; a cambacica não espera mais o período de floração e aprendeu a semear árvores frutíferas para se alimentar das flores que quisesse, além de ajudar na alimentação de outros que dependem de frutos, mas ainda são jovens demais, como o sanhaço. Outros, assim como foi com a harpia, ensinam cãezinhos a semear. Só há razão de ser, irmão-cão, aquilo que ainda não chegou. Não haverá fim para essa nova realidade e, portanto, não há mais nada a se fazer aqui. Estou satisfeita. Um dia, você aceitou com relutância a sua missão. Agora aceite que você a cumpriu. Aceite. Sua missão terminou.”

“Terminou...” – repete mentalmente o cão – “Terminou”. Ele adentrou na Floresta de Eucaliptos, que os passarinhos cultivaram; atravessou o Deserto de Ametista, assim como o Bosque das Árvores Secas; subiu pelo Riacho da Cascata Ascendente; descansou um pouco sob a Árvore-do-que-poderia-ter-sido e lá conversou um pouco com o protetor do lugar, o filho da água; correu, pulando e latindo, satisfeito, pelo Jardim das Margaridas e se encostou entre o Eucalipto Centenário e a Pedra do Firmamento. Ali, deitado, repensou em tudo o que passou, olhou para a lua e disse o último “muito obrigado!”. O cão respirou fundo. Sentiu-se feliz pelo cheiro agradável de musgo e terra. Colocou a cabeça entre as patas, fechou seus olhos e, finalmente, se tornou um com a natureza.

Uma brisa fria percorreu por todo o vale. Longe dali, o beija-flor, que estava treinando seus novos protegidos, parou no ar e voou para cima, rápido e em silêncio; do outro lado da floresta, a harpia-azul fitou seus cãezinhos, os quais atendendo o olhar foram para a toca e se deitaram, esperando seu retorno. Da mesma forma, os oito passarinhos que estavam aos cuidados do novo Pássaro-mais-velho, assim como dezenas de outras aves, que quando filhotes aos cuidados do cão se destacaram entre os seus e que agora lideravam pequenos grupos de animais, repassando o que aprenderam, voaram e pousaram no topo das árvores mais altas. Olharam para lua, respiraram fundo, abriram suas asas e uivaram. Uivaram por toda a noite.

Naquela noite, ouvia-se o uivo em uníssono dos Pássaros que Latem e nada mais além.



...
DIAS DEPOIS.

_ Levanta e venha comigo! – disse a Mãe Natureza. Disse e foi para o alto da montanha central.
O ser que um dia foi um cão abre os olhos, olha para o que se tornou e sorri. Ele se levanta e voa até onde está a Mãe Natureza, e de lá seguem voando juntos observando e acompanhando, de um horizonte ao outro, o desenvolvimento daqueles que serão, para sempre, os seus passarinhos.

FIM
Era uma vez um cão de rua que treinava a si mesmo, que um dia recebeu a missão de ser um Pássaro-mais-velho, que travou batalhas e sobreviveu a tempestades, que viu seus pequenos pássaros crescerem e receberem eles próprios as suas missões, que mereciam ou necessitavam, e que conseguiu da mãe natureza, por meio de uma estranha missão, aquilo que mais desejou: ser livre.


BC
P.S.: Com essa missão, eu aprendi mais do que ensinei. Obrigado por tudo, meus passarinhos! Muito obrigado!



 

segunda-feira, 18 de junho de 2012

LEMBRE-SE DE MIM


Eu olho ao meu redor e vejo uma caixa de madeira sobre a mesa
A caixa olha para mim e me conta uma série de histórias
Ela me lembra de quando a vi pela primeira vez ainda em sua casa
De quantas vezes a abri e fechei
Do dia em que quase a deixei cair
De quando a limpei
Anos de histórias contados em um olhar


Me lembro de onde estou
E olho para o outro lado
Vejo uma prateleira
Sobre a prateleira, uma cuia de chimarrão
A cuia vira para mim e me conta uma história muito bonita
Ele me conta de quando eu experimentei chimarrão e me pareceu chá de capim
De como meu avô, sem ser gaúcho, aprendeu a gostar disso
Ele falando com seu português errado, tão lindo e saudoso:
“Não é bom não. Só fica bom depois que vicêia.”
Eu gosto das historias que a cuia de chimarrão me conta


Eu já me distraí mesmo dos estudos, então me deixo levar
Apenas busco mais um contador de histórias
Acho aquele pequeno duende que ganhei de aniversário em 1999
O duende se senta sobre o suporte onde está localizado e começa a contar “causos”
Me lembra de quem me deu o presente
E de como era moda gostar de coisas esotéricas no fim dos anos noventa
Observa que quase nada no mundo mudou na tal era de aquário
Que alguns dizem que já chegou
E me diz que se impressionou no quanto eu mudei
Desde que era apenas um adolescente filhinho da mamãe metido a hippie
Agradeci ao elogio do duende e me pus a pensar


Essa “loucura” também pode acontecer com você, caro colega que está lendo esse texto?
Se acontecer, por favor, me conte
Olhe agora para algum objeto que está ao seu lado
Na mesa
Prateleira
Ou em cima de sua cama
Escolha algum presente ou lembrancinha qualquer que guardou e que está ao seu redor
Agora mesmo, próximo ao computador
Tem algo aí perto
Eu sei
Olhe para esse objeto e pergunte:
“Qual a sua historia?”
Quem lhe deu? Quando? Se você comprou, em qual circunstância?
Não tenha vergonha de surtar uma vez na vida
Acredito que um surto tão lindo é uma experiência que merece ser vivida e compartilhada


Desejo que todos possam ouvir histórias de pequenos objetos
Lembranças de entes queridos, que muitas vezes não existem mais, fisicamente, em nossas vidas
Tem quem não goste de histórias, mas como disse um sábio:
“Não é bom não. Só fica bom depois que vicêia.”
O universo precisa se renovar e por isso tudo muda tão rápido
O para sempre é relativo e de um modo ou de outro vai acabar
E quando você se for?
Será apenas uma memória agradável que irá gradualmente se apagar?
Seja lembrado!
Deixe um pouco de você
Seus valores
Seu carinho
Já pensou nisso?
Um objeto
Alguma simples lembrancinha
Guarda para sempre um pouco de você
Quando você se for, esse pequeno objeto irá contar a sua história
Você fica para sempre no presente que você dá de coração
Afinal, é tudo o que irá restar de você um dia

Uma doce lembrança 


BC

domingo, 13 de maio de 2012

Páprica I - Ela não sabia dizer não (2ª parte)


DIVINA MÃE

A você que é mãe, seja de criação, adoção, afeto ou gestação. Você tem a sua própria história, seu cenário pessoal, mas seja quem for, você é uma mãe Divina e essas palavras são para você.



“Estou cansada.”

Descanse, Divina. A guerra acabou. Você lutou muitas batalhas, sobreviveu a torturas sem fim. Desbravou caminhos inimagináveis e carrega, sob a sua pele, as cicatrizes de sua alma.

A vida às vezes parece injusta, eu sei. Quantas vezes você desistiu de algo para ajudar alguém? Quantas lembranças se passam em sua cabeça ao se recordar dos momentos em que ficou calada para evitar uma discussão? Quantas vezes você olha ao seu redor e tenta entender o que você fez para merecer isso? Por que os outros conseguem e você não? Quantas vezes você sorriu para disfarçar o sentimento torturante de humilhação? Quantas vezes você se deitou no sofá, cansada com o dia de amanhã?

“ Quem é você?”

Você se entristece, Divina. Chora de frente ao espelho, tentando se lembrar daquela mulher que você já foi um dia. Onde está aquele brilho no olhar? Para onde foi aquela menina que tinha certeza de que teria muitas conquistas? Tantos sonhos, esperanças e lembranças que se foram em meio à luta. Sabe por que a jovem sonhadora morreu, Divina? Porque ela era fraca! Sabe por que você surgiu no lugar daquela moça que achava que podia tudo? Porque você, Divina, é forte! 

Quando você anda pelas ruas, milhares de pensamentos, metas de conquistas e superação permeiam sua mente, enquanto a insegurança e o medo correm em suas veias e enfraquecem seus braços e pernas e você se cala, pois acredita que não adianta mais. Você não sabe, mas, enquanto isso, aqueles que a veem passar pensam: “Como eu queria ser como ela e ter essa confiança!”.

Você conseguiu. A luta incessante acabou por um motivo muito simples. Você já venceu! Olhe ao seu redor e perceba as suas conquistas. Veja o que você construiu. Olhe daqui, longe de tudo, para que possa enxergar. Observe com cuidado e respeito o mundo que gira ao seu redor. Admire e ame o reino que você criou. Saboreie o que plantou durante todos esses anos.

“Onde eu estou?”

Rainha guerreira. Você está onde ainda não é o seu lugar. Você, mãe, deve estar ao lado de seus filhos. Eles precisam de você, mãe Divina. Acorde!

“Eu não entendo...”

Acorde!

_ Mãe, você consegue me ouvir? Aperta minha mão se estiver me ouvindo. Ela apertou, doutor!
_ Ela vai ficar boa, mas precisa descansar.
_ Certo... estou indo! Ouviu mãe, você vai voltar pra mim. Eu vou ficar ali na sala ao lado. Estou aqui pertinho. Descansa mais um pouco e assim que a senhora estiver mais forte, a gente vai pra casa. 

“Casa...”

Páprica.

BC



Páprica

Páprica (1ª parte)


domingo, 1 de abril de 2012

Páprica I - Ela não sabia dizer não (1ª parte)


Dizem que Divina estava lavando as roupas de sua família naquela tarde de sábado, ouvindo a música Nossa Senhora de Roberto Carlos. Lavava e cantava e sonhava. Mulher sonhadora. Torcia a roupa e ia longe, quando a dor veio, a tontura, a fraqueza nos joelhos. Ela se sentou no chão em frente ao tanque, sem forças para gritar, pensando em onde estaria o seu menino. A mão vai ao peito.
_ Deus, que dor.
Sua cadela vem até ela. Cães sentem quando algo está errado. A cachorrinha começa a latir, talvez clamando por ajuda.

DIVINA
Trinta anos atrás. Era uma quarta-feira.

_ Pai, vai ter uma festa sábado...
_ Fica quieta e segura direito essa escada, menina! Vou acabá caindo daqui se você ficá aí distraída pensando em farra em vez de firmá esse trem direito. Eu podia chamá sua mãe pra segurá calada, mas cê sabe que ela num pode fazê força.
_ Por que o senhor não chama um eletricista? Vai acabar tomando choque.
_ Vou é arrancá esse fio e sentar nas suas perna se você continuá com essa conversa.
_ Tá bom... desculpa! É que o senhor tá sempre arrumando esse fio e todo dia dá mal contato e aí tem que mexer de novo.
_ Ave! Que raio de festa é essa?
_ É só festinha do pessoal aqui da rua na casa da Neire, pai. Não vai ser nada demais.
_ Se não vai ser nada demais, porque é que você qué tanto ir? Aposto que aquele primo dela vai tá lá.
_ Que primo?
_ Ora, aquele moleque, Ivan, filho do Alcides. Se você tivesse falado que ele ia e que não ia ficá perto dele eu até podia pensá no assunto. Agora cê quer me fazer de bobo? Você num vai é em lugar nenhum, menina sonhadora. Vai já pro quarto.

Quinta-feira, na escola.

_ Você vai certeza, não é, Divina?
_ Meu pai não deixou...
_ Ah, nem. Às vezes eu acho que você ainda é aquela meninha roceira que eu gostava de atazanar.
_ E às vezes você ainda é aquela menina cruel que fazia eu não querer vir pra escola. Meu pai só quer cuidar de mim. O que eu vou fazer? Se ele fosse igual ao seu pai e nem soubesse que eu existia eu também não ia me preocupar.
_ Nossa, Divina! Quem é a cruel aqui?
_ Desculpa! É que você me irrita. Se eu não posso ir, eu não posso e pronto.
_ Tudo bem. É que o Ivan vai estar lá. E ele fica o tempo todo perguntando de você.
_ Ele fica?

Sexta-feira, voltando para casa pelo caminho da praça, onde todos os dias se reuniam os garotos do bairro. Ivan sempre entre eles.

_ E aí, Divina! Jóia?
_ Oi, Ivan!
_ Tem tempo que não te vejo por aqui. Tá perdida?
_ Não... estou indo pra casa. Voltando da escola.
_ Mas sua casa fica pro outro lado.
_ Resolvi andar um pouco.
_ Hum... Você vai à festa da Neire amanhã, né?
_ Eu... É que... Sim, eu vou!
_ Ótimo! A gente se vê lá!
Sábado à noite, hora da festa.
_ Boa noite, pai!
_ Nem acabou a novela e cê já vai dormir?
_ Estou com sono.
_ Então vai pra cama. Boa noite, filha.
_ Boa noite, pai. Te amo!

...

_ Já dormiu? Abre aí! Cê precisa segurar a escada. Os fio tão dando curto. Daqui a pouco sua mãe e eu vamo ter que acender vela.
_ Espera pai, não abre!
_ Que maquiagem é essa moleca? Precisa ficá pintada desse jeito pra sonhá?
_ Eu vou à festa, pai! Todas as meninas da minha idade vão. Estou cansada de todo mundo rir da mocinha do interior. Desculpa pai, mas a menina sonhadora aqui não vai ficar segurando escada sábado à noite. Eu estou de saída.
...

Madrugada de domingo, após a festa.

_ Se divertiu na festa, moça? Tava lá dançando enquanto...
_ Mãe, o que meus tios estão fazendo aqui?
_ Filha, vem cá, vem. Me abraça, filha!
_ O que aconteceu, mãe? Cadê meu pai?
_ Seu pai sofreu um acidente, filha. Ele tava arrumando os fio e caiu da escada e bateu a cabeça. Ele tá lá no quarto com o doutor. Mas ele não tá bem não, filha. Meu velho não tá bem não.
_ Não chora mãe! Eu vou lá ver o pai!
_ Se pelo menos alguém tivesse segurado a escada.
...

O pai faleceu seis dias depois.
Ela nunca mais disse não.

Páprica.

BC



NOTA: PÁPRICA foi um texto escrito por mim há um ano e publicado no blog em 17 de abril de 2011, o qual pode ser lido aqui: http://bcmaoli.blogspot.com.br/2011/04/paprica.html. O trabalho mostra um momento na vida de seis personagens que vivem suas vidas sentindo que falta algo. Eles sentem um vazio no peito, uma falta de tempero em suas vidas. Reler um texto meses ou anos depois, mesmo que de minha autoria, faz com que eu tenha outra interpretação da ideia passada, como se não fosse minha. Hoje acho que a essência do que fora abordado em Páprica pode ser melhor explorada e é essa a idéia dessa nova seqüência. Em analogia a outras mídias, pode-se entender que o primeiro Páprica foi o episódio piloto que agora se tornou uma serie focada na vida dos personagens em diferentes fases de sua maturidade e a busca por algo que eles ainda não sabem bem o que é.

domingo, 18 de março de 2012

EU QUERO LER VOCÊ


E aí, tudo bem? Sente-se e, por favor, fique à vontade. É melhor eu ir direto ao assunto. Chamei você aqui porque eu preciso de sua ajuda. Tenho uma teoria e preciso que confie em mim para que eu possa comprová-la. Acredito que todos nós somos textos. Não apenas as pessoas, mas tudo o que existe. Tudo é um texto a ser lido e, como sabe, eu tenho essa obsessão. Eu preciso ler as coisas.

Ler algo não é apenas transformar um objeto em palavras. Um texto só é realmente lido se for sentido. Cada tipo de texto apresenta um determinado estilo de estruturação, e é preciso compreender esse estilo para que seja possível senti-lo. Alguns chamam de tipo, forma, gênero do texto, mas não estamos aqui para discutir regras gramaticais, então, para facilitar nosso experimento, chamaremos de tipologia textual. Espécimes da natureza que não tiveram a intervenção do ser humano geralmente são fáceis de serem lidos, pois se tratam, em sua maioria, de poemas e textos descritivos, uma ou outra fábula. No entanto, há textos que só consigo ler e dissecar após um estudo sobre sua forma. Adapto-me ao texto e então eu consigo identificar e decifrar os códigos. O problema a ser solucionado com a comprovação dessa teoria é que há textos que eu não consigo sentir. Não consigo decodificar sua essência, e isto está levando embora o que resta de minha sanidade. É aí que você entra. Eu vou me abrir para você, para que possa confiar em mim. A partir daí você conseguirá ler quem eu sou. Em troca eu quero que me ajude a identificar sua tipologia textual e me permita a maior intimidade que Deus pode nos autorizar. Permita-me ler você.

Algumas pessoas se limitam a sua própria tipologia textual e a ler aqueles que são de mesma tipologia, tendo problemas de convívio com quem é de um gênero diferente, sem entender o real e simples motivo da falta de sintonia. Ao entender isso, será possível ler o próximo e ter uma compreensão mais íntima da pessoa. Para esclarecer, vou dar um exemplo de tipos de textos que alguns colegas que trabalham comigo no cartório demonstraram ser. Era horário de almoço e estávamos todos andando na calçada em direção a um restaurante, quando presenciamos uma velhinha sendo atropelada ao atravessar a rua. Cada um teve uma reação diferente. Um colega, cuja tipologia textual é uma novela, explicava o acontecido para todos que ali chegavam, de modo detalhado e demorado, com excesso de acontecimentos narrados e todo um enredo para a situação da pobre senhora; outro, um texto lírico, viu ali o fim trágico de uma senhora que por anos procurou ir ao Fórum para resolver um problema que, para ela, não teve o fim esperado; uma colega, um texto informativo, viu apenas que a senhora não atravessou na faixa, mas que o motorista errou pelo excesso de velocidade e os herdeiros poderiam "entrar com processo de indenização"; o último colega presente, uma epopéia, por revolta, disse que se pudesse daria uma surra no motorista que a atropelou (não, não daria surra nenhuma... ele é uma epopéia). Foi quando percebi que todos éramos tipos diferentes de texto e cada um viu o que foi capaz de ver conforme o texto que é. A partir da descoberta da tipologia textual de meus colegas, eu pude vê-los de um modo que antes não era possível. Por mais amigos que fôssemos, apenas após eu entender os textos que eles são, é que eu pude lê-los com clareza e só assim pude entendê-los melhor e admirá-los ainda mais. São textos lindos.

Definir o tipo de texto que você é não é algo que se faz superficialmente, julgando o modo que se leva a vida ou sua profissão. Se seguirmos por esse caminho, minha vida não é um texto, é um filme Sessão da Tarde dos anos 80. O maior clichê piegas. Já quanto à minha tipologia textual, não estou tão certo agora. Com base nesse pensamento, analisarei minha tipologia por exclusão. Não me identifico com o poema, porque vejo poema como a poesia por si mesma. Existe poesia em todas as coisas. Existe poesia em uma árvore dançando com o vento; nas asas de uma mosca que voa pela cozinha; no caminho brilhante da gosma deixada por uma lesma; no canto dos pássaros e em patos no lago. Há poesia na novela, no conto, na crônica, no romance. O poema é a poesia traduzida e codificada. Definitivamente eu não sou um poema. Complicado me identificar. Todos mudamos com as experiências diárias. Eu sei que eu mudei. Creio que é por isso que é mais fácil definirmos quem éramos, do que quem somos agora. Então, vamos lá! Eu já fui um conto, uma fábula, um texto meramente informativo, uma novela onde a cada mudança de tipologia textual, eu continuava alternando entre os personagens que fui um dia, os quais muitas vezes entraram em conflito entre si e terminei como um romance, com um núcleo principal bem definido e outras tramas menores que se desenvolviam simultaneamente. Como as tramas tiveram uma conclusão satisfatória, o texto que eu sou mudou. Os vários personagens, com suas tipologias textuais específicas, foram eliminando-se um a um, até que sobrasse o que foi batizado de “O pequeno”, e assim eu me tornei uma crônica. É isso! Eu sou uma crônica!

Agora você já tem a chave para ler o texto que eu sou. Apesar da impressão estranha semelhante a me despir e permitir que veja minha nudez, digo a você que é uma sensação satisfatória. Facilitar o caminho para que eu seja lido em minha essência é algo mais prazeroso do que imaginei a princípio. E agora? O que acha? Está tudo bem? Confortável? Sim? Que bom, pois é a sua vez! Olhe ao seu redor. Selecione algo, alguém ou alguma coisa que aconteceu hoje. Pense no que não sai de sua cabeça a ponto de mudar seu comportamento. Concentre-se nisso. O que essa coisa lhe faz pensar? Leia a coisa. Extraia o texto e analise o modo como você se sente. Assim você poderá se conhecer melhor. É hora de se despir. Mostre-me a sua tipologia textual! Eu quero ler você!



Que tipo de texto você é? Responda nos comentários, de forma direta se preferir, do tipo marcando “x”!
eu sou:
( ) um conto;
( ) uma novela;
( ) uma crônica;
( ) um romance;
( ) um poema;
( ) um cordel;
( ) uma fábula;
( ) outro tipo de texto: ____________

BC


terça-feira, 6 de março de 2012

TEM UMA GALINHA EM MEU QUINTAL

Hoje eu acordei com o cacarejar de uma galinha. Abri a janela para o ritual matinal de desejar bom dia ao dia e lá estava ela. Uma galinha em meu quintal. Olhei para ela e ela olhou para mim. Continuei olhando meio que sem acreditar e ela me ignorou e começou a bicar o chão. Algum vizinho era o dono do bicho, o que significava que ela não podia ficar ali. O que queria dizer que eu tinha que encontrar uma solução. Pensei nas cenas possíveis para resolver o caso. Todas tendiam a eu procurando nas casas vizinhas pelo dono do animal e nós dois cercando uma galinha dando olés e eu imaginando que o cacarejar era ela gargalhando da minha cara. Não. Sempre há um modo mais fácil. Abri o portão, deixei aberto e esperei a danada sair. Fechei o portão e pronto, bateu um peso na consciência.

A galinha tinha dono e poderia fazer falta na refeição de uma família. Logo calculei que fiz algo bom e salvei sua vida, e ri pensando em quem vai encontrá-la e se sentir esperto correndo atrás dela no meio da rua. E percebi como me distraio com uma facilidade incrível e perco meu tempo analisando baboseiras.

A dispersão de pensamentos vem com a falta de objetivos. Eu vivia em função de determinada situação que não existe mais. Desde então eu fiquei sem função. Precisava de um novo foco. O episódio da galinha me fez perceber como vivo em uma realidade extremamente simples e como é isso que eu quero para o resto da minha vida. Simplicidade é a minha meta. Essa galinha me fez um bem maior do que ela jamais irá imaginar.


O recomeço.


Bruno

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O PEQUENO GIRASSOL

(um outro ponto de vista sobre a história do rio sereno)

Eu fiquei esperando parar de chover. Parou e eu fui pro quintal. Eu gosto de marrom e verde. Não só de marrom e nem só de verde, mas de marrom e verde. O quintal é marrom e verde e eu gosto do quintal. Só que não tava muito marrom nem muito verde, tava tudo meio amarelado. Eu resolvi plantar uma semente de girassol no jardim que meu avô mandou eu dar pros pássaros, só que uma semente eu quis plantar. Quando ele ficar grande também vai ficar amarelo. Minha roupa, a cor da parede e até a cara da minha mãe tava meio amarela. Aí minha mãe falou que era porque tinha um arco-íris bem grande e tudo fica meio amarelado por causa do brilho do tesouro que fica no fim do arco-íris. Antes era verde e marrom e misturou com azul, vermelho e mais um monte de cor e as coisas ficavam douradas. E eu resolvi que ia achar esse tesouro.

Sempre que chovia eu corria pra fora pra procurar o arco-íris e ir atrás do tesouro que brilhava tanto. Aí eu corri e procurei e procurei, e cheguei bem perto algumas vezes, mas toda vez o arco-íris desaparecia.

Um dia apareceu um arco-íris bem grandão. Ia de um lado até o outro. Esse foi mais atrevido e deixou eu chegar bem pertinho. Eu tinha certeza que tava quase encostando nele, porque tudo tava dourado demais, quando o danado começou a sumir. Aí eu entendi que tava na ponta errada e o tesouro ficava é do outro lado, mas não dava mais tempo e eu tinha que esperar chover de novo.

E todo mundo que sabia que eu tava nessa busca vinha me contar como é o tesouro e antes eu não sabia como era o que eu tava procurando, mas se todo mundo sabe do jeito que o tesouro é, eu já sabia o que tinha que procurar e tinha que ser mais rápido ainda. Aí eu cansei de esperar e fui mais esperto e antes mesmo do arco-íris aparecer eu já tava lá na chuva. E aí eu encontrei o que eu achei que era o tesouro porque era do jeito que tinham me falado. E eu tava feliz, mas bem quando eu pensei que tava tudo certo e eu fui correndo contar pra minha mãe o que eu tinha encontrado, meu avô foi pro rio. Acho que ele foi nadar. Aí eu percebi que o que eu achei que fosse o tesouro não era um tesouro nada. Eu chamei ele pra voltar, mas ele falou que lá é legal. Eu também quero ir pro rio porque aqui tá muito quente, mas parece que eu tenho que aprender a nadar primeiro pra eu poder ir também e eu não sei nadar e aí eu chorei. E eu corri e corri. Aí eu pulei. Eu pulo bem longe. E corri ainda mais rápido que tudo. Eu sou muito rápido. E fiquei acordado até bem tarde porque eu quis. Eu fiquei com medo, mas eu ouvi meu avô falando baixinho no meu ouvido, quando ele foi me cobrir de noite, que ele tá me vigiando lá de onde ele tá e, já que ele tá me vigiando, então eu tenho que me comportar e tenho que ser um bom menino e ir pra escola e comer direitinho e dormir cedo. E eu não vou mais chorar. E não vou mais ficar procurando tesouro nenhum.

Parou de chover um bom tempo e tava muito quente, aí eu peguei a mangueira e fui regar as plantas no quintal, que é verde e marrom. E eu sentei ali no chão do quintal e fiquei regando. Quando eu vi, o que era marrom e verde foi ficando meio dourado e aí eu olhei pra água. Eu não sei o que eu fiz, mas apareceu um arco-íris muito bonito. E aí eu tirei uma foto pra mostrar pra vocês. E adivinha o que tava bem no fim do arco-íris ainda bem pequenininho?


O girassol!

Bruno

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O VELHO E O PEQUENO NO RIO SERENO

(em memória de meu avô e amigo, Seu Tião Faustino)


(O RIO SERENO)

(O VELHO)

(O PEQUENO)


O velho estava sentado na margem do rio há três semanas.

Olhar fixo na correnteza.

O movimento hipnótico o atraia.

Resolveu ser cauteloso e colocou apenas os pés na água.

Temperatura agradável.

A lama no fundo massageando os pés.

A leveza que há tempos procurava.

O pequeno chamava.

Ao longe, ouvia seu nome e então voltava.

Voltava e se sentava.

Sentava-se olhando a água.



Vezes antes o velho olhou para o rio.

Olhou e voltou para a cabana.

Em certa ocasião, ele resolveu que precisava mergulhar.

Ouviu dizer que lá é permitido ver amigos que estão nas águas,

cujas vozes insistiam em não se calar à noite.

O pequeno pediu que ficasse em terra.

Pelo pequeno, o velho resolveu esperar o rio o chamar.

Aguentou a dor pelo pequeno.

Agora as águas do rio estavam mais belas.

O velho se senta na beira do rio



A fumaça saindo pela chaminé da casinha de madeira.

O almoço está pronto.

O pequeno se vira para o rio o mais próximo que pode e sussurra,

avisando que é hora de se sentar à mesa.

Ele quer voltar para casa.

Olha para o rio.

Ele se senta e olha o rio.

Na hora do jantar, o pequeno sussurra um juramento:

“Em terra não haverá solidão.

Em terra se reunirão os irmãos.

Sono e despertar,

com sentimento de união!”

“Ora, pequeno, é o que tanto rogo!

Não se preocupe, estou voltando!

Prepare o fogo logo.

Pois a fome está me...

Onde está você, pequeno?”

“Aqui!”

“Para onde foram as cores?

Para onde foi ar, que não vem a mim?

De

onde

vieram

as dores?

Necessito beber das águas do rio!”

“O rio leva a um lugar incerto e ao fim.”

O rio leva para um lugar certo e sem fim.

O ritmo intermitente do som das águas,

insistem em chamar a atenção para a história de uma vida.

A vida e o rio.

Ele volta e coloca os pés no rio.

“Para onde foram as dores?”

A dor pertence à terra. Não há dor em nosso rio.

O sol. O céu. O ar tão fino e puro. Os insetos.

A vegetação ao redor. Tudo tão colorido.

“De onde vieram as cores?”

As cores vieram do rio.

Novamente ele se senta.

O velho se senta e olha o rio.




Ao fim do entardecer de mais um dia, o pequeno,

novamente aos sussurros,

lembra o velho de sua importante função como carregador do lampião,

iluminando o caminho para os que seguiam atrás.

“Tu és o novo carregador do lampião, pequeno.

Iluminando a passagem de quem vem à frente.”

“Mas e os perigos do caminho?

E o meu refúgio?”

“Valores que criamos.

O único refúgio é o rio.”

“O único refúgio é o rio...”

O pequeno percebeu que era preciso libertá-lo.

Ele quer o rio, mas se preocupa com o pequeno.

Ele tenta voltar e novamente aguentar a dor.

“Não tenho mais medo!

Você tem?”

“Sim, eu tenho medo!

Todavia, não se preocupe mais.

Você cumpriu muito bem a sua missão.

Pelo senhor eu tenho forças para segurar o lampião!”

É hora de aceitar o rio.

Mesmo àquela distância era possível entender.

“Lá está o sentido das coisas.”

O pequeno respirou fundo e sussurrou:

“Talvez seja hora de aceitar o rio.”

O velho olhou para trás uma última vez:

“Hora de aceitar o rio.”




No rio¸ amigos e família o saúdam.

Tudo o que o velho desejou.

“Estou com aqueles que me amam.”

A fartura de benevolência que tanto esperou.

“Com licença...”

“Venha! Entre!

Seja bem-vindo às minhas águas.”

Cadeira vazia.

“Estou com você, pequeno!

E estarei com você no rio sereno.”

O pequeno ouve o sussurro e sorri:

“Estarei com o senhor no rio sereno.”



BC Maoli

sábado, 14 de janeiro de 2012

PRA LONGE DE TUDO


Sentei-me em um lugar mais isolado, mas eu sei que eles querem conversar comigo. Daqui posso vê-los despejando entreolhares em minha direção enquanto concluem sua conversa de praxe para o momento. Penso em me levantar e simplesmente sair andando, mas sou adulto e, como tal, tenho obrigações sociais. Obrigações sociais: coisas que você tem que fazer para agradar a quem não se importa com você. A conversa que eles sentem que precisam ter comigo também é uma obrigação social. É aí que eu fecho os olhos. Fecho apertando bem forte e então respiro o mais fundo possível. Aperto tanto os olhos que começo a ver pequenos pontos de luz que aos poucos vão formando imagens. Geralmente é nesse momento que eu vejo uma espécie de túnel. Túnel não, acho que o nome é vórtice. Sinto-me como num sonho onde eu me liberto e as regras da física não se aplicam. O aqui não é mais aqui e o agora não é mais agora. Então eu vou para bem longe. Vou pra longe de tudo. E eu não sinto mais coisa alguma, nem boa nem má.

Abro os olhos e eles já estão ao meu lado. Eu os vejo, mas não os enxergo. Não assimilo seus rostos. Não guardo informações desnecessárias. Eles falam comigo como previsto. Pelos olhares lânguidos, é a tal fala social que tanto quis evitar. Posso ouvir os sons que saem de suas bocas, mas não consigo entender o que dizem. Longe de tudo, onde estou, não sou capaz de decodificar as palavras. Pela obrigação social, eu procuro olhar em seus olhos. Olhar nos olhos é o básico para que o interlocutor se sinta importante. Pela obrigação social, eu respondo algo genérico, com um tom especial baseado no que imagino que estejam falando. Acho que balanço a cabeça e digo algo como “é verdade... desse jeito...”. Satisfeitos, um deles coloca a mão em meu ombro e se levanta¸ levando quem o acompanhava consigo e, graças a Deus, estou sozinho novamente.

Longe de tudo, eu o procuro. “Achei!”. Focalizo e me aproximo de onde ele está. Toco em sua cabeça e trago-o aqui onde não há mais ninguém além de nós dois. Ninguém para se excitar ouvindo-me me despedir. Até mesmo um tolo imaturo e egoísta, como eu, sabe a hora de deixar ir. “Obrigado!”. A gratidão mais pura. Saio de meu refúgio mental para devolvê-lo ao mundo. A jornada individual se torna ainda mais solitária. O vazio que carrego em segredo se expande. Fecho os olhos e me jogo novamente no vórtice.

É tão tranqüilo... Talvez um dia eu possa ficar aqui para sempre para que minha alma cansada também possa, finalmente, encontrar a paz.


Bruno

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

SUA MÃE VAI MORRER (Interlúdio)

Era uma vez na U.T.I.
  • Uma crônica baseada, infelizmente, em fatos reais.

Entro e vou falar com a recepcionista:
_ Quando liberam a entrada para visitas?
_ Quinze horas. Eles organizam lá em cima e me avisam por telefone para que eu possa liberar vocês.
_ Então... Muito obrigado!
Resolvo me sentar em uma das cadeiras enquanto aguardo a hora indicada. Uma senhora de cabelo grisalho bem curto olha para mim aparentando curiosidade em saber quem é o motivo de eu estar ali ou qualquer outro assunto que sirva para iniciar uma conversa. Olho para a janela.
Após entrar, me viro para o lado e lá está a senhorinha fazendo massagem nos pés de um senhor inconsciente que ocupa o leito à esquerda:
_ E a moça que estava aqui ao lado? – perguntou à enfermeira.
_ Teve alta ontem à noite – respondeu e foi para o outro lado da sala.
Ela me olha como quem tem necessidade de fazer algo que auxilie alguém, qualquer coisa, mas a sensação de impotência a destrói por dentro. Resolvo ampará-la e a deixo me ajudar:
_ Isso faz bem? – pergunto “ingenuamente”.
Foi apenas isso que falei e seus olhos chorosos ganharam brilho:
_ É muito bom pra ele. Você segura assim e faz assim, ta vendo?
Se sentir útil parece acalmá-la.
Eu começo a massagem e ela consegue sorrir.
...

No outro dia, lá está ela fazendo massagem e olhando para mim:
_ Quem é o seu doente? Seu pai, seu avô?
Meu doente? Penso, mas não falo. Ela não precisa de um chato nessa fase triste de sua vida. Respondo e devolvo a pergunta:
_ E o seu doente?
_ Meu marido – diz passando a mão em seu rosto.
Talvez estivessem até brigados, mas a dor une as pessoas. Ela precisa se sentir útil para se sentir bem, e eu preciso analisar banalidades como se fossem coisas importantes, como minha válvula de escape.
...

Mais um dia e ela passa um líquido no rosto do doente dela. A princípio achei que era para hidratar, já que a pele do coitado estava ressecada, mas percebi que era água benta, ou consagrada, ou algo do tipo. Era fé. Meu doente acredita que passar ímã no corpo melhora a circulação e ameniza dores. Após anos rindo de tal crendice popular, estou aqui passando o imã sobre sua perna. Não questiono mais se faz sentido ou não. Ele acredita. É só o que importa no momento. É fé.
Nos encontramos na saída:
_ O que o médico disse sobre seu doente? – ela pergunta.
Ofereço carona, mas ela diz que está esperando alguém para buscá-la.
...

Ontem a senhorinha não estava lá fazendo a massagem ou passando água com fé. Uma criança ocupava o leito ao lado.
_ E o colega? – pergunto à enfermeira.
_ Faleceu hoje às seis e meia da manhã.
...

Hoje, na recepção, um rapaz entra e vai até a garota no balcão:
_ Quando liberam a entrada para visitas?
_ Quinze horas. Eles organizam lá em cima e me avisam por telefone para que eu possa liberar vocês.
_ Então... Muito obrigado!

E a vida segue.

Maoli